sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Viva Santo Antônio


O projeto de cinema já tinha uns cinco anos que acontecia em Florianópolis, quando resolvemos fazer uma sessão na cidade de Laguna, no sul do estado, com o apoio do escritório técnico daquela cidade.
Naquela ocasião o histórico e imponente cinema da cidade estava fechado há alguns anos e era triste para os moradores terem de se deslocar até a cidade vizinha, simplesmente pra poder ir ao cinema, ainda mais tendo uma bela construção daquele porte bem no centro da cidade, porém fora de uso.
Esta foi uma das razões pelas quais tivemos a iniciativa de levar o projeto pra lá. Na verdade a programação não envolvia somente a projeção de um filme, pois era um evento que se estendia além da própria sessão e buscava, ao fim desta, a participação da plateia de modo que ela se sentisse convidada a fazer comentários sobre o filme, em uma espécie de debate, que contava com a ajuda de um mediador.
Já nas primeiras reuniões a gente resolveu mudar o local da projeção. Deixamos de lado o comum e previsível auditório e decidimos usar como tela a parede cega na lateral da igreja matriz, na praça central, que proporcionaria um quadro de grandes dimensões e poderia ser visto de muito longe.
Em seguida, sendo ao ar livre, teríamos de usar uma boa amplificação de som, inclusive com microfones, para que as pessoas pudessem ser ouvidas durante os debates.
E, por fim, a escolha do filme tinha de ser certeira, igualmente atrativa pra todo o público e instigante para os espectadores de primeira viagem, ao menos para que voltassem na próxima sessão. Sendo assim, dentre os filmes sugeridos pelas equipes de Laguna e Floripa, o escolhido foi A Rosa Púrpura do Cairo, do diretor Woody Allen.
A trama é divertida e começa com uma mulher que está no cinema quando, de repente, um dos personagens do filme olha pra ela, ali sentada na plateia, e começa a lhe fazer perguntas, interagindo com ela ante o espanto dos outros personagens do próprio filme. Não satisfeito em apenas falar com a moça o homem resolve sair da tela, se materializa com um corpo físico e desce do palco pra conhecê-la melhor.
Bem, a partir da escolha do filme a gente ficou bem empolgado, imaginando essa cena acontecendo naquele telão enorme na parede da igreja e pensando na reação do público com aquilo. O mediador também foi orientado a provocar na plateia o interesse pelo cinema, pela cultura enfim, fazendo um painel sobre a obra do diretor e sua trajetória, além de dar dicas cinematográficas e citar curiosidades sobre as produções do cinema brasileiro que, certamente, poderiam ser indicadas para as próximas sessões.
No dia marcado, tudo conferido. Som, projetor de DVD, microfones, fios pra todos os lados, caixas, a limpeza do espaço, tudo era passado e repassado desde cedo. O padre veio acompanhar a montagem do equipamento e, elogiando a nossa iniciativa, disse que ia dar tudo certo pois agora era só esperar a noite chegar pra tela se acender.
A gente pegou algumas cadeiras emprestadas do salão paroquial mas elas nem deram pra saída, de tanta gente que chegava. No instante seguinte tinha pessoas sentadas no chão, em lençóis e toalhas, em bancos de todos os tipos e tamanhos, em cadeiras de praia e até nos carros ao fundo da praça. Depois chegaram as carrocinhas de pipoca, o homem do algodão doce e do churros e, a seguir, a água e o refrigerante pra que a sessão começasse.
O som da plateia rindo toda junta, as movimentações e reações das pessoas conforme o filme avançava eram acompanhadas por nós com muita alegria e sentimento de dever cumprido.
Assim, quando o filme terminou, quando a gente estava começando a montar o local pro mediador fazer a introdução aos debates, uma chuva surpreendeu todo mundo e a correria foi enorme. A gente correu pra proteger o equipamento, as cadeiras e o público esvaziou o local com a mesma pressa.
Nenhum de nós queria admitir a frustração pela chuva ter chegado bem na hora da mediação, mas foi visível a melancolia no rosto da equipe, enquanto arrumava tudo pra ir embora. Era a primeira sessão do projeto na cidade e a gente contava com a participação do público, queríamos ter falado do projeto, dos filmes, do cinema, da Cultura. Mas a chuva chegou e estragou tudo.
Enfim, no dia seguinte, no portão do escritório, antes de voltar pra Florianópolis, a gente estava meio cabisbaixo, meio sem jeito nas despedias, com receio de aumentar o já grande desalento do grupo, quando um senhor, morador local, passando do outro lado da praça nos viu e acenou, vindo até nós.
Ele era conhecido dos funcionários do escritório e quando chegou perto já foi cumprimentando todo mundo:
– Olha, vocês estão de parabéns, meninos. Que belo trabalho vocês fizeram para a nossa cidade aqui na noite de ontem. Um filme belíssimo. Uma tela gigante daquela, com qualidade melhor do que muito cinema por aí.
– Obrigado – murmurou timidamente uma das meninas.
E o velhinho continuou:
– Vocês sabem que essa nossa igreja aqui é de Santo Antônio dos Anjos, né? E vocês, além do trabalho realizado, também tiveram muita sorte, vocês sabem? Claro, foi muita sorte de todos nós que a chuva só chegou quando o filme terminou. Parece que estava tudo combinado. Nem uma gota durante o filme. E foi só ele acabar pra Santo Antônio então deixar a chuva cair. Sorte a nossa. Sorte de vocês. Então eu repito com muito orgulho: parabéns a vocês todos. E não se esqueçam de agradecer sempre ao nosso Santo Antônio.
De repente o que era tristeza se transformou em alegria. Em cada um surgiu um contentamento sem tamanho que nenhum de nós tinha se dado conta até aquele momento. A gente só estava lamentando a chuva no final do filme e foi exatamente por aquilo, pela chuva só ter caído no final da sessão, que o velhinho estava contente, dizendo que tudo tinha dado certo e que a gente teve sorte, muita sorte.
Então, todos nós nos abraçamos novamente, agora com grandes e fraternos sorrisos nos rostos, trocando parabéns entre todos, com a alegria de termos feito um trabalho legal e com ânimo pra continuar o nosso projeto de cinema.
Quando entramos no carro e abrimos o vidro pra dar adeus, alguém gritou “Viva Santo Antônio”.
E todos respondemos: – Viva Santo Antônio!


quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

A Escada


Já tem um tempo que eu venho me cobrando caminhar mais, pedalar sempre que puder e, enfim, fazer exercícios regulares, estendendo as atividades físicas a algo mais do que o ansiado jogo de tênis nos finais de semana.
Então, algumas vezes eu pensava em subir pelas escadas no meu prédio, ao invés de ficar esperando o elevador. De frente pro espelho, na portaria, eu me pegava indeciso, dizendo mentalmente que minha preguiça era mato e que se Deus desse uma mãozinha, aí sim, eu poderia desenvolver uma rotina tal e fazer os exercícios que tanto queria, combatendo o meu princípio de sedentarismo barrigulático sorrelfo.
Um dia eu cheguei em casa na hora do almoço e encontrei o prédio sem luz. Tudo às escuras, entrei pela portaria, não vi ninguém e, automaticamente, passei pela porta corta-fogo que dá acesso às escadas. Subi os cinco andares, dois de garagem e três de apartamentos, até chegar ao meu, que é o terceiro.
Quando estava acabando de esquentar um breve alimento regenerativo, qual um papalvo, a luz voltou. E foi aí que eu me dei conta de que a falta de energia ocorreu exatamente no espaço de tempo de eu subir as escadas, e que, se o problema era contar com a ajudinha de Deus, pronto, ela tinha vindo ao meu encalço naquele dia.
Todo contente com a coincidência divina, eu terminei o meu almoço e voltei pro trabalho pensando seriamente que, amanhã, mesmo tendo luz, eu bem que poderia subir de escada novamente. Deste modo eu nem precisaria da ajudinha de Deus, pois eu mesmo seria a minha própria ajuda pra colaborar com o fim do tal sintoma barrigulático.
Decidido a ir pelas escadas, no dia seguinte eu cheguei na portaria e, que estranho, tudo escuro de novo. Olha Deus, hoje nem precisava, eu pensei. Eu ia de escada de qualquer maneira, o senhor nem precisava se preocupar comigo. E fui subindo novamente os cinco andares como já explicado, dois de garagem e três de apartamentos.
Minha surpresa foi constatar que, de novo, dali a uns 15 minutos a luz voltou. Eu até me assustei porque estava perto da geladeira e ela tocou um bipe longo quando ligou e começou a acender umas luzinhas de controle, fazendo um monte de outros bipinhos. Bem, pelo menos dessa vez eu ia poder esquentar a comida no microondas, ao contrário do dia anterior, quando a luz só voltou depois de tudo ter sido feito no fogão mesmo.
No terceiro dia eu confesso que, na hora em que cheguei pro almoço, já tinha até esquecido o compromisso de subir pelas escadas. Na verdade, antes eu tinha passado na lavanderia pra buscar o edredom e o saco que eu trazia comigo era enorme. Não era pesado, mas se existe um troço difícil de carregar é um saco com um edredom. Bate nas pernas quando a gente anda, arrasta no chão se a gente estica muito o braço. Ele é motivo suficiente pra o cabra que sofre do conhecido sedentarismo barrigulático localizado rejeitar qualquer esforço a mais em prol da sua cura episódica. Então, com o advento do edredom eu tinha dito pra mim mesmo, no caminho pra casa, que não ia de escada dessa vez, de jeito nenhum, aconteça o que acontecer.
Acontece que não tinha luz no prédio pelo terceiro dia consecutivo e eu pensei logo: mas assim não dá. Assim Deus já está extrapolando. Até Deus, como deus, tem lá os seus direitos, ok, mas isso já é demais.
Lembrando que nos dias anteriores a luz voltava logo assim que eu chegava em casa, resolvi enganar Deus dessa vez e fiquei ali na portaria esperando pelo seu retorno. Não o retorno de Deus, mas da energia no prédio!
Deu uns 10 minutos, nada. Decorreram uns 15 e o porteiro passou por mim. Me cumprimentou ali no corredor da entrada, foi até a sua mesa, titubeou – os porteiros sabem titubear como poucos –, me olhou de novo lá de longe e veio até mim.
– O senhor vai subir?
– Sim, estou esperando a luz voltar.
– Mas é que ela não vai voltar, não.
– Como assim? Todo dia eu subo de escada e assim que eu chego em casa a luz volta. É só o tempo de eu chegar mesmo. Então, hoje eu não vou cair nessa de novo. Vou esperar aqui – disse com decisão.
– Mas é que hoje eles estão trocando a caixa de luz da Garagem 1. Tem três dias que eles estão aí mexendo nela. Só que hoje vai ser a troca final mesmo. Por isso a luz só vai normalizar às 16 horas, 4 da tarde, quando eles terminarem tudo.
– Tem certeza? E como é que nos outros dias tinha luz?
– Sim, tinha mesmo. Mas é que o síndico combinou com a empresa de deixar o prédio com energia no horário de almoço, para o pessoal que vem almoçar em casa, sabe? Mas foi só nos dois primeiros dias. Hoje eles não vão parar até terminar todo o trabalho. Por isso só vão religar a luz às 16 horas.
Enquanto eu ia subindo as escadas com o saco do edredom na mão, vencendo os cinco andares, dois de gara... – acho que já escrevi isso –, só me vinha à cabeça que nos outros dias eu poderia, simplesmente, ter esperado dar meio-dia pra luz voltar e teria subido de elevador. Ademais, definitivamente, aquilo não tinha nada a ver com Deus e, sim, com os eletricistas que estavam no prédio.
Deixei o edredom em casa e saí pra almoçar na esquina mesmo. Quando passava pelo Emerson de novo, na portaria, ele veio todo solene me dizer que tinha um quadro bem grande no elevador, avisando dos serviços elétricos e os horários que o prédio ia ficar sem luz.
– Eu até vi o senhor chegar ontem e antes de ontem. Notei que faltavam cinco minutos pra eles ligarem a luz. Ia dizer pra o senhor esperar um pouco. Mas como o senhor passava sempre com pressa e ia direto pra escada, aí eu não falava nada. Achei que o senhor sabia.
Deus está em tudo, é verdade. Ele nos ajuda aqui e ali, sempre que pode. Pelo menos a gente acredita nisso. Mas um pouco de atitude da nossa parte, de vez em quando, não faria mal algum.
Então, de hoje em diante, eu vou voltar a pedalar, caminhar mais, subir as escadas, jogar tênis com mais frequência, enfim, até comer menos doce.
Humm... Pois é, comer menos doce já é um pouco demais, né?
Tem coisas que se pode negociar.
Outras, não!


terça-feira, 27 de novembro de 2018

A Sorte e a Fé


Confiar mesmo, assim totalmente, eu não confiava. Mas uma viagem cautelosa não ia abalar as estruturas da parceria que eu cultivava com o meu Fiat 147, ano 82, verde claro, apelidado carinhosamente de Kid.
De manhã bem cedinho eu já comecei a colocar as coisas no bagageiro do teto, as malas lá atrás e ia revisando mentalmente as providências de praxe que eu tinha tomado na véspera, de encher os pneus, ver o nível do óleo, o limpador de para-brisa e outras coisas. Enquanto arrumava as bagagens eu lembrava de cada item e ia checando se estava ok.
Eu nunca tinha ido a São Lourenço, mas meus sogros adoravam aquela estação de águas, o parque, e minha esposa relembrava da sua adolescência naquela cidade e das vezes que tinha passado férias lá. Então, nós íamos começar nossas férias com aquela viagem, muito insistida por todos. Eu tinha 20 e poucos anos, meus sogros ambos mais de 70 e, pra contrabalançar, meu filho Daniel contava uns dois anos de idade.
Entramos todos no Kid e minha sogra disse que uma boa viagem precisa de fé e de sorte. Aliás, tudo na vida. Então, que a sorte ela desejava pra todos nós e a fé, deixasse por conta dela, pois que ia pedir a Santa Rita uma bela e segura viagem, afastando todos os perigos, que assim seja!
No começo eu estava cauteloso com a direção, tendo meu sogro logo ali no banco ao meu lado. É que eu não queria correr ou fazer algo reprovável durante a viagem, algo que pudesse causar qualquer tipo de insegurança, afinal estava toda a família na estrada e eu não queria ser imprudente.
Um pouco antes de entrar na serra eu perguntei pra ele:
– E então, estou dirigindo bem? Tá tudo ok?
E ele respondeu:
– Tudo ok. Você só dirige muito devagar. Quando eu vinha pra São Lourenço, antigamente, eu andava bem mais rápido. Inclusive aqui na serra eu fazia toda ela em terceira marcha com o meu Chevrolet. Mas tá bom assim também.
Eu nunca dirigi rápido mesmo, mas confesso que me surpreendi com aquela resposta, até porque eu estava cuidando justamente com eles, mais velhos, pra não intranquilizar a viagem, e agora me dava conta de estar errando na mão, ou no pé, do acelerador.
O problema é que assim que eu comecei a pisar forte na serra, pegando embalo nas subidas mais íngremes pra que o carro não forçasse muito o motor, eu comecei a ouvir um barulho na frente, mais do meu lado, o do motorista, que me preocupou. Pensei que era na roda. Depois achei que podia ser o ferrinho que segura o capô que estava fora do lugar e por isso vibrava. Só que o barulho ia e vinha e eu fui levando sem falar nada com ninguém pra não inquietar.
Na parada pro lanche eu fui dar uma olhada. Abri o compartimento da frente e da mala, mas não vi nada de errado. Bem, não há de ser nada, pensei. Se tem mesmo fé e sorte nesta bagaça, vai dar tudo certo.
Só que o resto da viagem foi preocupante. Eu estava até com dor nos ombros de tanto que eu segurava o volante com força, a cada vez que ouvia algo. E o barulho continuava indo e vindo sem que eu soubesse o que poderiam ser aqueles estalos que entravam pela janela e iam direto até o meu ouvido.
Finalmente chegamos a São Lourenço. Um dia ótimo de sol, uma casa ótima que a gente tinha alugado, pertinho do parque das águas, uma cozinha ótima, com as comidinhas sendo arrumadas e... eu com aquela dor no ombro que só piorava.
Depois de toda a arrumação da casa, das bagagens, do almoço; depois que todos foram tirar um cochilo eu fui rodar a cidade à procura de um mecânico, claro. Eu só pensava na volta, dali a uns dias, e em como seria dirigir com aquele barulho de novo. Se fosse algo grave teria que ter tempo pra consertar e eu não queria passar aqueles dias pensando na volta e no barulho incômodo.
Assim que entrei na mecânica um senhor de macacão veio na minha direção e apontou pra placa, do Rio de Janeiro.
– Pois não, carioca, a que devemos esta singela visita?
Aflito, eu contei tudo. Do barulho, dos estalos, do carro carregado, do ferrinho do capô, da geral que eu fiz antes de pegar a estrada e ele só coçava a cabeça enquanto eu falava.
– Olha, se o rapaz diz que tomou todas as providências antes da viagem, aí fica ruim pra eu tentar pensar em alguma coisa errada aqui. Mas, vamos ver. Pode ser um monte de coisa este tipo de barulho.
No momento em que ele veio com uma chave de roda e apontou o parafuso a chave caiu da sua mão.
– Minhanossinhora, essa roda tá completamente solta – disse com o seu sotaque mineiro de espanto ­– Ocê veio do Rio de Janeiro até aqui com essa roda solta assim? Rapaz, você teve muita sorte, viu?
Foi então que eu me lembrei que quando eu fui avaliar os pneus, o rapaz da loja disse que era preciso trocar as rodas da frente de lugar, pois que o rodízio era bom pra que elas se gastassem por igual. Na verdade ele apertou as rodas enquanto o carro estava suspenso e depois, provavelmente, se esqueceu de apertar até o final, quando o carro já estava no chão. O filme veio todinho na minha cabeça.
O mecânico continuava espantado apertando todas as rodas e eu perto dele explicando, contrariado, que tomei todos os cuidados e, mesmo assim, viajei com alto risco de ter um acidente.
Ele coçou a cabeça de novo, jogou a chave de rodas na mesa, cheia de outras ferramentas e disse:
– A minha mãe é que estava certa. Ela dizia que tudo na nossa vida precisa de um pouco de sorte e um pouco de fé. O carioca teve as duas coisas hoje.
Eu só sei que naquela tarde eu voltei pra casa e fui direto na geladeira pegar um enorme pedaço de bolo de abacaxi, enquanto todos ainda dormiam. Eu comia o bolo na varanda e lembrava da viagem, o tempo todo aquele barulho, e só me vinham à cabeça as palavras sorte e fé da minha sogra.
A vida nos afastou de repente e eu tenho a sensação de não ter agradecido o suficiente à dona Anita. Pelos bolos de abacaxi. Pela sorte. Pela fé.
Que ela esteja com Deus!


terça-feira, 13 de novembro de 2018

Pena


Naquele final de tarde Fernando telefonou para a mãe perguntando se ela já estava vindo pra casa. De pronto, com certa preocupação, a voz do outro lado perguntou o que tinha acontecido, se era algo urgente, ao que o filho respondeu que não era nada demais e apenas queria apresentar-lhe uma pessoa.
Logo a conversa criou um impasse. O filho tentando manter o anonimato da tal pessoa e a mãe querendo saber, antecipadamente, quem era.
– É que eu quero que a senhora conheça uma pessoa que está aqui em casa. É só isso. Não tem nada urgente, conforme eu disse antes.
– E eu vou ter uma surpresa?
– Certamente que vai! Você até já viu essa pessoa, ela já esteve aqui em casa outras vezes e pertence a um grupo de nosso convívio, embora não tão recente. Mas acho que a senhora vai lembrar.
– Minha nossa. Me diz ao menos como ela é?
– Não, mãe. Qualquer pista que eu der a senhora vai matar e eu quero ver a sua reação diante dela.
– Como assim? Então eu vou ter uma reação?
– Acho que vai – e deu um risinho abafado pelo telefone.
– É um namorado, meu filho? É um rapaz que você está namorando? Olha, isso é bem tranquilo pra mim, sabe? Não tem...
– Não, mãe. Não é um namorado, não. Vem pra casa e chega de falar enquanto dirige. Vem logo!
A mãe passou na padaria perto de casa e comprou uma torta salgada, escolheu um vinho branco e um refrigerante, um chocolate básico e foi apressada pra casa.
Assim que abriu a porta deu de cara com uma linda menina, na faixa dos mesmos 30 anos do filho. Tinha um belo e volumoso cabelo crespo e ruivo, uma sobrancelha bem desenhada emoldurando uma fisionomia angelical e, com suas mãos de fada, segurava a mão do Fernando, um tanto nervosa.
Os dois, sentados no sofá, logo se levantaram e foram abraçar a recém-chegada. Depois ajudaram a arrumar as coisas do lanche na cozinha e então ele começou.
– A senhora lembra da Camila?
– Sim, agora estou me lembrando. Eu estava pra dizer que ela não me era estranha. Aí, agora que você falou o nome Camila, eu tive a certeza. Ela estudou com você lá no colégio da Tijuca, né? Mas vocês eram muito crianças naquele tempo.
– Eu sabia que você ia lembrar dela. Quase apostamos isso entre nós.
O lanchinho correu às mil maravilhas e a surpresa da mãe com a namorada do filho foi enfim melhor que o esperado. A hesitação do Fernando era porque a mãe sabia que a Camila tinha um filho e ela até conhecia o pai, pois que o rapaz fazia parte da turminha da escola que, coincidentemente, muitas vezes se reunia em torno daquela mesma mesa da sala onde agora conversavam os três. Então, a questão era saber se a mãe estaria tranquila com toda aquela situação, afinal ela até queria ser avó, mas, digamos, os planos não eram exatamente aqueles.
No meio da conversa a Camila foi pegar uma foto do filho pra mostrar. Agora com 11 anos o menino era uma figura. E como foto é mesmo coisa de mãe, a do Fernando disse um rápido espera aí e foi até o quarto pra buscar também umas fotos antigas, mostrando que em um dos aniversários da turma ela havia tirado uma foto junto com a criança.
– Olha essa aqui e veja se não é o próprio Totico no meu colo?
– É verdade. É ele mesmo. – disse o casal em coro.
Naquela noite, antes de dormir, quando a mãe veio dar boa noite, o filho deu-lhe um beijo e pegando na sua mão disse:
– Obrigado, viu?
– Que nada. Eu adoro a Camila. Não só a Camila como o menino Totico. E depois vocês tem uma história juntos, se conhecem desde o colégio e ainda...
– Não é só por isso que eu tô agradecendo, mãe.
– Como assim, o que eu fiz?
– Você perguntou se eu estava namorando um rapaz, lembra? É isso que eu estou agradecendo. Pelo seu respeito, por sua aceitação, pelo seu amor. Isso foi muito legal. A minha liberdade. A sua generosidade. Eita nós. Taí uma mãe de cabeça aberta!
E os dois se abraçaram como se fosse uma dança, uma despedida daquele dia especial. Um dia de paz e de compreensão.
O mundo parece estar caminhando numa direção bem bacana.
Que pena eu sinto do Brasil.


terça-feira, 23 de outubro de 2018

Conto Com Enxofre

(autoria desconhecida)

– Boa tarde. É o senhor Gilberto?
– Sim, sou eu mesmo.

– Ótimo. Deixa eu só checar mais uns dados, por favor...  Aqui no nosso cadastro diz que você não aceita o PT de jeito nenhum, certo?
– Isso mesmo. De jeito nenhum.

– Acredita que qualquer coisa é melhor que a volta do PT, confere? Aceita qualquer coisa.
– Exatamente. Qualquer coisa.

– Obrigado pelas informações. O motivo da nossa visita é muito simples: você foi premiado com uma oportunidade única, para acabar com o PT!
– Caramba! Que maravilha! Eu?

– Sim! Está em suas mãos. Basta assinar esse contrato e o PT vai sumir da face da terra, para todo o sempre!
– Nossa, assim? Feito mágica? Só depende de mim?

– Não é mágica. Nós temos os nossos métodos. Mas sim, só depende de você. Basta assinar.
– É pra já! Deixa eu só dar uma lida aqui... Nacionalidade, CPF, aham, profissão... tudo certo... Espera aí: aqui está dizendo que eu preciso entregar um dos meus filhos pra vocês... Para que ele seja torturado.

– É a contrapartida.
– Contrapartida? Isso não é contrapartida! Está falando em tortura!

– Sim, mas, segundo nosso cadastro, você não acha tortura uma coisa tão grave assim, concorda? E, só para deixar claro, já que você também disse certa vez que "corrupção é um tipo de tortura social etc..." e que "tortura é ter de lidar com a burocracia do governo", aqui nós estamos falando no sentido clássico, tá? Quebrar ossos, dar choque... Acho que ali nas letras miúdas está descrito tudo que a gente vai fazer. Quase tudo, na verdade, pois nosso funcionário tem liberdade criativa.
– Mas são meus filhos!

– Bom, mas esse não pode ser um critério, concorda? Todo torturado vai ser filho de alguém. Sempre vai ter uma mãe ou um pai desesperado. Se a gente for se prender a isso, não dá para torturar ninguém.
– Mas quando eu escrevi sobre tortura, eu estava falando de pessoas que MERECERAM! A gente não fez nada para merecer isso.

– Se esse é o problema, nós podemos resolver facilmente. Faço um levantamento das suas multas de trânsito, transação sem nota fiscal, casos extraconjugais, carteirinha de estudante falsa pra pagar meia, gato de TV a cabo... Temos aqui uma foto sua com camiseta vermelha, por exemplo.
– E desde quando usar vermelho é motivo para perseguir alguém?

– Já temos precedentes nesse sentido. Em todo caso, pra falar abertamente aqui, a gente nem precisa de nada disso, basta dizer que alguém é suspeito. Então, não se preocupe com essas burocracias, a gente consegue apresentar várias justificativas.
– Esquece. Eu não vou assinar isso.

– Você pode encarar isso como um pequeno sacrifício pessoal em nome de um bem maior, que é o fim do PT. E são só seis meses. Depois a gente devolve. Vocês superam...
– Isso é loucura. Cai fora daqui!

– Então, você não quer aproveitar essa oportunidade... Ok. Só preciso colocar uma explicação aqui na ficha do prêmio. Devo dizer, então, que na verdade você é petista?
– Não! Eu não sou petista!

– Então, estou confuso... Você aceita ou não qualquer coisa pra acabar com o PT?
– Eu não vou aceitar que machuquem minha família em nome dessa raiva contra o PT!

(Nota: eu não aceito que ninguém de nossas ou de quaisquer famílias seja perseguido, ameaçado, atacado e tenha sua vida colocada em risco em nome dessa raiva contra o PT. Segue o conto...)

– Nesse caso, sinto muito por tomar seu tempo. Nós vamos procurar outra pessoa que esteja disposta a aproveitar essa oportunidade.
– Vai lá! Eu DUVIDO que você vá encontrar alguém que coloque seu próprio filho na mão de um torturador só porque não quer a volta do PT.

– Tem razão... Já observamos isso. O senhor era nossa última tentativa nesse modelo. Para o próximo, nós vamos mudar a pergunta. Vamos dizer que ele pode acabar com o PT se ele assinar o contrato mandando os filhos de outra pessoa pra tortura. Assim fica mais tranquilo, né? Quando é o filho dos outros que é agredido, ninguém se incomoda... Então tá. Eu vou falar com o próximo candidato ao prêmio e daqui a pouco eu volto aqui.
– Volta aqui pra que?

– Pra buscar o seu filho.
– Como assim?

– Acabo de explicar: vamos perguntar a outra pessoa se...
– Chega! Isso é errado!

– Certo, errado... É tudo uma questão de opinião, né? Muita gente considera certo o que estamos fazendo.
– Saia daqui de uma vez e não volte nunca! Vocês não tem esse direito!

– Direitos? Agora você se importa com direitos?


quarta-feira, 10 de outubro de 2018

O Brejo da Cruz


Um amigo meu me contou que a novidade que tem no Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz. Um local fantástico, no tal Brejo da Cruz é onde as coisas mais inacreditáveis acontecem e lá ninguém acha nada fora do normal, nem mesmo o fato de alguém se alimentar de luz.
Sua atmosfera mais extraordinária tem um tom esverdeado, quase sem intensidade, capaz de se assemelhar ao fim da claridade, no anoitecer, quando todas as cores se recolhem e esmorecem à espera do breu, pasteurizando todas as silhuetas e tornando chã toda a topografia. É por esta razão que quase não dá pra perceber exatamente quem são esses seres que deambulam, a todo momento, pelas ruas do Brejo da Cruz.
Uns parecem cantar, outros dançam maracatus. Muitos são sanfoneiros, outros são alfaiates com seus panos escarlates, enrolados no próprio corpo, arrastando pelo chão. Tem uns que viram Jesus, enquanto outros se curam em longos passeios nus. E tem ainda os bombeiros, os faxineiros e os jardineiros, que andam sempre juntos em rimas improváveis, cultivando os seus sufixos práticos.
O que é estranho mesmo, diz esse meu amigo, é que depois de uma certa idade, vagueando pelas ruas, pelos museus, entrando e saindo de igrejas e bares, muitos nem se lembram que existe um Brejo da Cruz, que eram crianças e que comiam luz.
De um tempo pra cá eu soube que a coisa tem mudado muito, degenerando o próprio Brejo da Cruz e seus encantos poéticos musicais existenciais. É que alguns outros seres, infortunadamente, têm se especializado em se misturar na multidão, habilmente. Sua capacidade é imensa e eles se disfarçam tão bem que ninguém pergunta de onde essa gente vem. Os poucos que são notados simulam armas nas mãos, facões na cintura e pedras nos bolsos, se revelando prontos pra qualquer luta física, o que nada têm a ver com a essência do Brejo da Cruz.
Quando se debatem ou discutem com os seres imaginários à sua volta, despejam neles toda a sua munição, catando nos escombros do seu próprio ser paus e pedras, junto com palavras escolhidas do alforje de mágoas, sangue e ódios que eles carregam.  Não se utilizam das rimas, das músicas, das cantorias e nem mesmo dos sufixos. Não dançam, não contemplam as árvores, as flores, nem as obras dos museus, tampouco percebem as portas das igrejas abertas e convidativas.
Em alguns casos esses seres chegam ao cúmulo de pedir a prisão, a deportação de outras gentes pra Angola ou pra Guiné e exigem mandar de volta o comboio da Penha, despachando o populacho pra favela ou pra Benguela, tudo isso pra preservar o seu mar turquesa à lá Istambul.
Sol. Sol. A culpa deve ser do sol. Que bate na moleira, o sol. O mesmo sol que lava diariamente as ruas e calçadas nas manhãs iluminadas do Brejo da Cruz; que mantém o seu universo surreal vivo e ávido por novas manifestações, por novas canções, por novas digestões de luz, a matéria prima da energia vital que cultiva a saudade de quem já esteve por lá e quer o Brejo da Cruz de volta à sua origem, sem armas, sem ódio, sem ranger de dentes e sem paus e pedras.
Um Brejo da Cruz com seus cegos tocando blues. Isso sim. Com seus bilheteiros, baleiros e garçons. Onde os pintores, os poetas, os filósofos, os atores e os fotógrafos são os responsáveis pelas paisagens, pelos pores do sol de cada dia, pelo mar incondicionalmente límpido e público e por todas as árvores, plantas e flores em seus movimentos diários e suaves do leste até o oeste. Tudo por lá parece meio louco, sim. Mas só parece.
Pois o tal Brejo é o berço de onde todos nós viemos, o braço que forma o colo em que todos nós fomos embalados, e dormimos e acordamos no meio da noite. O Brejo da Cruz é a nossa civilidade, o respeito, a cortesia com o outro, as boas maneiras e a fraternidade humana. É a nossa escola com o nosso professor preferido dentro da sala de aula.
É ver com o coração. Reparar o defeito do outro lhe estendendo a mão. O Brejo da Cruz é isso. E mesmo que a gente lembre pouco ou nada dele, ele está lá, em algum lugar guardado em nós. Muitos se esqueceram das suas ruas e becos, do seu picadeiro e do seu trapézio, das suas paredes em telas coloridas, dos seus meninos ficando azuis. E muitos já nem se lembram que eram crianças e que comiam luz.


Para a minha amiga Ana Viegas.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O Futebol


Uma coisa que me faz ser saudosista é o tal do futebol. No meu tempo de adolescente me lembro que no rádio todo jogo era um jogão. E depois, quando a gente via os jogos, em reprises que passava no final da programação da tevê, que se chamava videotape, a gente só confirmava que aquelas 150 mil pessoas do Maracanã tinham ido assistir um futebol de alto nível.
Mas ouvir o jogo, direto, pelo rádio, era muito bom. Acho que hoje a crueza das imagens, capazes de constatar a pouca qualidade dos jogadores, não deixa qualquer dúvida no espectador. Se fosse transmitido pelo rádio talvez o narrador pudesse produzir alguma emoção, à revelia do próprio jogo.
Na minha casa todo mundo é Flamengo. Aos domingos, depois do almoço meu pai dormia com o radinho ligado debaixo do travesseiro. A gente ouvia o som de longe, as musiquinhas dos anúncios comerciais, as vinhetas e até, claro, os gritos do narrador. A gente tinha certeza de que meu pai estava dormindo, só que de repente ele soltava um palavrão, xingando um jogador qualquer, ou um bandeirinha desqualificado ou mesmo o juiz, sempre o personagem preferido.
Uma hora a gente ouvia o ronco alto dele, daqueles que quase assobia no final, de tão profundo. Dali a pouco ele falava, resmungava e soltava o palavrão. Nessa hora, na sala, a minha mãe logo levantava o dedo pra gente e dizia “eu não disse que ele não estava dormindo?”. E todo mundo caía na risada.
Os locutores que meu pai me ensinou a gostar foram Valdir Amaral e Jorge Curi. Este último era um flamenguista fanático e não escondia a sua tendência narrativa quando saía gol. Pelo grito e pela verve, de longe eu já sabia que era gol do Flamengo. Na verdade, com aquele meio campo com Andrade, Adílio e Zico os gols eram sempre uma sequência lógica, quase matemática, metafísica, tipo metafórica, metagaláctica, metalônima, enfim.
Na telinha o nosso ídolo era Januário de Oliveira, da TV Educativa, a tevê pública do Rio de Janeiro. O jogo principal do domingo passava sempre à meia-noite em VT, com narração dele. Eu e meu pai combinávamos de ver o jogo juntos, mesmo com a promessa de sonolência na segunda-feira, e minha mãe sempre preparava algum petisco de surpresa pra vir ver o Mengão com a gente.
Aqui cabe um parêntesis bem marcado. Minha mãe sabia muito de futebol. Sabia mais do que eu e meu pai. Muito mais. Ela percebia as táticas, os deslocamentos e as infiltrações dos jogadores, as tabelas pra avançar nas linhas de defesa, as viradas de jogo e até as trocas de posições que os jogadores faziam durante a partida pra confundir a marcação.
Muitas vezes ela nos chamava a atenção apontando pra tela e dizendo “olha só como o Lico saiu da esquerda pra receber no meio”, ou então “tá vendo como o Júnior prendeu a bola pra esperar a entrada do Nunes?”. Era tão rápido que a gente corria o olho pra ver o jogador no campo e tentar entender o que ela dizia.
Quando tinha jogo importante, decisão ou eliminatório, meu pai tinha um ritual todo especial. Ele comprava barbante virgem e dava um nó pra cada jogador do time adversário. Dizia que era pra amarrar o jogo dele, o mardito. O goleiro ganhava três nós por segurança e, algumas vezes, esse barbante cheio de nós ia pra baixo do pé do sofá, onde a gente sentava, ou ia direto pro congelador.
Duas coisas engraçadas que eu me lembro dessa liturgia futebolística lá de casa. Uma era quando ia entrar um jogador do banco que não tinha sido amarrado. Meu pai corria no congelador e acrescentava o novo nó, falando o nome do atleta que ia entrar. E a outra era quando o nome do jogador era muito complicado, jogador do exterior por exemplo, aí ele preparava o nó e me chamava:
– Fala esse nome aí pra mim, que eu vou amarrar esse sacana.
Aí eu lia o nome e ele apertava o nó com toda a força.
Um dia desses eu estava vendo um jogo do campeonato brasileiro, desses que a gente fica 90 minutos e não vê uma única jogada bonita ou de craque, o chamado futebol moderno. Eu estava assistindo em Floripa, meu irmão em Campo Grande/MS e meu filho no Rio. Os dois assistindo também e teclando no celular comigo. O jogo prestes a acabar, o Flamengo precisando de um gol, o tempo passando e, de repente, gol do Flamengo no último minuto.
Acabou o jogo em seguida e eu não me contive. Fiquei de pé na frente da tevê, mostrando a mão fechada na direção da imagem, encolhendo e esticando o braço quase de joelho, com o corpo todo curvado. Aí, disse “pronto, agora vou ligar pros dois”.
Quando meu irmão atendeu passou logo pra minha cunhada.
– Cunhado, o cara ficou louco aqui com o gol. Foi pra frente da tevê, ficou em pé mostrando o braço esticado, com os punhos fechados, parecia que ia entrar televisão adentro. Tá doido o bicho aqui.
Mandei beijos e parabéns e corri pra ligar pro Deco.
– Fala flamenguista sofredor – disse eu já quase rouco.
– Pai, eu não tenho saúde pra esses jogos não! Fiquei elétrico aqui, torcendo quietinho até o gol. Aí depois não consegui nem ficar sentado. Fui pra frente da tevê e fiquei chamando todo mundo pra porrada, levantei o mãozão fechado aqui que eles merecem, rapaz, e estiquei os braços pra mostrar onde corre o sangue rubro-negro. Que jogo!
Meu irmão. Meu filho. Eu. O Flamengo.
E a saudade do meu pai.
Acho que o velho nos ensinou tudo direitinho...


quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A Contratação


No final da década de 1980 eu fui designado, pelo diretor do órgão público onde eu trabalhava, pra contratar um arquiteto. O órgão mantinha convênio com muitas creches no estado do Rio de Janeiro e a direção pediu um estudo geral da qualidade das instalações que abrigavam as crianças, pois era grande a preocupação com a falta de recursos que ocorria em quase todas as unidades de atendimento.
A realidade era que a manutenção das creches era bem precária desde sempre e o novo projeto vinha justamente propor uma verba especial, ao menos para sanar os casos mais urgentes, como infiltrações, recuperação de telhados, portas e janelas e, claro, as instalações hidráulicas e elétricas que tiravam o sono do diretor e nosso também, como subordinados chefes de Seção.
Falei com alguns colegas da área pra me ajudar e eles tabularam algumas questões específicas pra que eu pudesse entrevistar os postulantes ao cargo. Achei aquilo ótimo porque eu fazia as mesmas perguntas a todos e ia anotando as respostas pra poder avaliar, junto com a comissão, os melhores candidatos.
Logo de cara me surpreendi com uma menina, muito jovem, que sabia muito de tudo. Se fosse o Tom Jobim o avaliador, diria que aquela arquiteta era uma craque. Muito segura, ela contou que foi até visitar algumas creches pra saber realmente do que se tratava e pra poder ter uma ideia de grandeza do problema. Eu gostei da palavra grandeza que ela usou, até porque definia especificamente que era muita coisa a ser feita, ao contrário do que supunha o nosso pobre e preocupado diretor.
O último candidato que eu entrevistei também foi curioso, mas, digamos, por um motivo diferente. Seu nome era Cássio e possuía mais cursos de especialização do que todos os outros concorrentes. Disse que a faculdade sozinha não formava ninguém e que o bom profissional tinha que procurar sempre melhorar, o que causou uma boa impressão logo de cara. Algum tempo depois, pensando nas duas entrevistas, eu fiz um paralelo entre a grandeza da nossa necessidade, mencionada pela menina arquiteta, e a grandeza do ego do Cássio. O que foi uma pena.
Voltando à entrevista, eu ia lendo cada questão, comum a todos. Por exemplo, se o candidato sabia fazer uma planta do local visitado e indicar nela os problemas encontrados. Ao que ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas hoje em dia, com uma boa foto a gente resolve isso.
Depois eu perguntei se ele podia estimar o material a ser usado e o custo para a gente conseguir verba para a obra, detalhando a execução das etapas. E ele respondeu:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer. Mas a gente pode dar um chute, assim por cima, que aí não vai faltar verba, né? O problema seria faltar. Se sobrar, tá tranquilo.
Rapidamente eu passei pra outra e outra questão e todas iam cumprindo a estranha sequência do “puxa, tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, seguidas por uma esdrúxula observação sobre a sua solução. Se fosse o Dadá Maravilha, o Dario Peito de Aço, ele diria que o problema daquele candidato era a sua nenhuma aptidão para a solucionática diante da problemática. E olha que o Dadá sempre sabia muito bem do que estava falando.
Ao final eu olhei os meus papéis com as perguntas e conferi nele todas as vezes que eu anotei “tá aí uma coisa que ele não sabe fazer”, embaixo de cada uma delas. Depois passei pra ele as informações de praxe sobre o prazo de análise e a data do resultado das entrevistas, enumerei os documentos necessários à contratação e quando ia dar por encerrada a sessão ele me interrompeu:
– Então, pelas entrevistas que você fez, do pessoal que foi avaliado, esse monte de cursos que eu tenho, será que você pode dar uma forcinha pra eu ser o contratado?
Então eu nem precisei pensar muito numa resposta, porque a frase me veio fácil como se ela estivesse escrita num quadro atrás da minha mesa. Eu só a li:
– Puxa, tá aí uma coisa que eu não vou poder fazer – disse como se fosse o meu professor Záulio, de Antropologia, com a prova corrigida na mão, diante do aluno a pedir nota maior pra passar de fase.
Então, deu um estalo em mim e eu parei tudo. Me sentei de novo e fiquei conversando com o Cássio um bom tempo ali na sala. Na verdade eu estava preocupado de ter soado grosseiro a minha resposta e expliquei que o modo como ele se comportou não me dava alternativa em relação a sua contratação.
No final demos boas risadas e até a secretária Ana, que era formada em filosofia, ao entrar na sala pra me avisar que ia sair pro almoço, deu o seu pitaco, batendo no ombro dele:
– Menino, como tu faz uma entrevista dessas? Só falou das coisas que tu não sabia, rapaz!
Aquele bordão do Cássio esteve presente por muito tempo na Seção de Patrimônio daquele órgão. Cada um que tomava conhecimento da história o adotava pra si, principalmente quando queria negar alguma coisa pra alguém, em tom jocoso. Era só um servidor pedir um favor ou mesmo uma tarefa de trabalho, que logo o outro respondia: “tá aí uma coisa que eu não sei fazer”, e todos riam juntos.
Mas me lembro bem que, naquele dia, a minha maior preocupação, no momento seguinte que eu respondi ao Cássio, foi que ele não ficasse magoado comigo. Vá lá que ele até merecia a resposta, mas senti que peguei pesado com o rapaz. Ainda bem que a conversa que tivemos depois, que era pra ele não ficar mal, serviu ainda mais pra mim.