sábado, 13 de dezembro de 2025

A Vassoura

 

Aquela troca de presentes, em plena noite de Natal, estava um tanto estranha. E ia ficar muito mais. Isso porque na hora em que a dona Estela foi abrir o seu presente, deu-se um silêncio incômodo, nada combinado entre as pessoas da família mas, de alguma forma, o ambiente estava inquieto.

Então, a matriarca identificou o seu amigo oculto, que era o seu genro. Alguns gritinhos de iupi surgiram tímidos na sala, elevando o grau da tensão. É verdade que, diante da revelação do presente do genro para a sogra, uma parte da família estava ali para, simplesmente, ver o circo pegar fogo. Quiçá até que a chama se alastrasse para a árvore e o coitado do Papai Noel, se bobeasse.

Ela abriu a caixa, tirou de dentro um outro embrulho e, ao cabo de alguns segundos, trouxe nas mãos uma estapafúrdia vassoura. Sim, uma vassoura de piaçava, sem o cabo naturalmente, pois que este estava guardado no fundo da cozinha.

Estranho foi que, ao mesmo tempo em que a família se preparava pra relacionar o presente como um notório utensílio de bruxa, algo natural na cultura vassourística, a dona Estela olhou os seus detalhes, minuciosamente, o material e, por fim, dá um enorme abraço na tal vassoura, como se fosse um presente caro, um desejo, algo estimado ou muito querido.

Toda contente, a sogra então chamou o genro pra perto e este também ganhou um efusivo abraço em agradecimento pela surpresa, diante de olhares incrédulos. Nem mesmo em um reality televisivo, desses comuns nos nossos tempos, as pessoas procuram com tanta vivacidade as câmeras escondidas a registrar as reviravoltas dos programas.

Era evidente que ninguém estava entendendo nada ali naquela sala. Na noite de Natal o genro dá de presente pra sogra uma vassoura de piaçava, com cabo de madeira crua, e ela ainda gosta do regalo e agradece com a maior gratidão! Não, alguma coisa aqui não bate. Definitivamente.

Corria o jantar, a ceia se desenrolando e aquela história ainda teimava em se contorcer na cabeça da família. Os demais agregados, que ocupavam a mesma categoria do genro mencionado, olhavam de lado pro coitado, desaprovando a petulância, o atrevimento daquela brincadeira em pleno Natal. E logo com a matriarca!

Foi quando ela se levantou na cabeceira da mesa e, ao invés de proferir o seu previsível discurso anual, no qual alertava que aquele poderia ser o seu último ano celebrando o Natal com todos, dona Estela tomou um gole de vinho e pediu a palavra:

– Antes da minha saudação de Natal, que faço todos os anos nessa mesma mesa e que pode ser esta a minha derradeira ocasião, é preciso esclarecer algo que muitos aqui consideraram inusitado, pra dizer o mínimo. Quando eu vim morar em Florianópolis muitas etapas de adaptação foram necessárias. Em todos os sentidos. A maioria de vocês sabe muito bem a falta que me faz o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Entre essas adaptações, necessárias para uma nova etapa da vida, havia uma em especial que era que aqui não se vende as ótimas vassouras de piaçava que no Rio a gente encontra em qualquer esquina. Não há vassoura melhor do que as de piaçava. Não mesmo. Foi por esta razão que eu fiquei muito sensibilizada com o presente que ganhei hoje, pois era uma coisa que eu queria, que eu sempre reclamava e que ninguém providenciava. Agora, pronto, o meu genro me deu uma e eu estou feliz da vida. Dito e explicado, vamos então brindar à nossa saúde, à Paz, ao entendimento entre as pessoas e ao nosso Natal. Muito obrigado, meu genro, pelo presente. Deus te dê o céu!

No início envergonhado, o genro logo se viu emocionado com o agradecimento público da sogra. Mas com as brincadeiras que se seguiram o clima de amizade voltou a dar o tom daquela ceia. Claro que, a todo momento alguém perguntava se a dona Estela ia fazer um sobrevoo na avenida beira-mar, ou se ela podia ir voando comprar mais cerveja. E diante das risadas, sempre tinha alguém a propor um outro brinde.

Essa história da vassoura sempre vem à lembrança nessa época de Natal. Às vezes surge com imagens mais nítidas e diálogos memoráveis. Outras, nem tanto. Mas a sensação que fica é sempre boa, de uma saudade cheia de Paz e de muita admiração e amizade.

Principalmente para o genro.

Eu seria capaz de jurar.

 


quinta-feira, 20 de novembro de 2025

O Diagnóstico

 

Meu desconfiômetro diz que eu, provavelmente, estava no lugar errado, na hora errada. A beira-mar de Floripa é lugar de rico. Ali eles passeiam, fingindo treino, exibem seus carros suntuosos e o tom das roupas combina com o boné, a pulseira do relógio e com o tênis milionário.

O cenário cuida de confirmar a regra quando naquelas plagas surge um sol lindo, cristalino, no meio de uma manhã típica do inverno, um sol acolhedor brilhando no mar à espera das fotos que certamente o farão pano de fundo de qualquer lembrança. Como eu disse é lugar de rico.

O problema surge exatamente quando um zé ninguém, como eu, resolve dar uma paradinha ali a caminho do mercado. O sujeito para o carro, atravessa a rua, senta no banquinho, estica as pernas e, nos poucos minutos que restam para o cumprimento da sua função doméstica, se atreve a contemplar justamente aquele mar e aquele sol reluzente, que só os dias úteis oferecem, como que para mexer com o juízo do homem que vai trabalhar.

No banco de pedra atrás de mim, uma conversa começava a ficar audível.

– Eu não sou mendigo, não senhora. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha tia, que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio encefálico. Ela está em estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra ficar com ela e com o passar do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra comer. Na verdade eu nem devia ter vindo pra cá porque faz só um mês que a minha irmã faleceu. Ela foi atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio encefálico. Uma tristeza. Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.

Depois de um certo tempo a mulher, de quem eu, até então, só ouvia a voz, respondeu:

– Realmente é uma história muito triste, mas o senhor entenda que eu hoje saí só pra dar uma caminhada e não trouxe nada comigo, nem mesmo o meu celular.

Ela continuou falando, se desculpando com o homem e, ao mesmo tempo, se ia levantando pra ir embora, na tentativa de se livrar daquele incômodo diálogo à beira-mar. Na cintura, por baixo da blusa rosa e do casaco rosa, o volume de um enorme celular preso ao corpo desmentia a sua negativa em poder ajudar.

O mundo é assim, pensei eu com os meus óculos escuros, na falta dos adequados botões da conhecida frase. Enquanto isso, a mulher ganhava a calçada e seguia o seu caminho, talvez também ressentida por não ter nem botões, nem óculos escuros para o caso de surgir algum aleatório impulso de refletir sobre o triste pedido do homem.

O meu tempo estava acabando, mas eu pude ver que o tal sujeito deu um arrodeio entre as árvores e nesse momento tentava falar com um casal que olhava o mar, apontando os barcos ao longe. Tentava porque ao iniciar as suas argumentações eu percebi que o casal abruptamente mudou de direção, a ponto de deixar o pobre falando sozinho, talvez, aí sim, com seus botões.

O amigo e a amiga leitora já desconfiam do inevitável. Sim, o cabra deu mais algumas voltas, arrodeios, como eu escrevi acima e, inapelavelmente, veio pleitear comigo a sua salvação. Mal sabia ele que eu já tinha ouvido tudo momentos antes e, desde então, liso como sempre, já maquinava as minhas desculpas, antes mesmo de a história começar.

– O senhor tenha um bom dia.

– Bom dia. Tudo bem?

– Olha, eu não sou mendigo, não, senhor. Não gosto de pedir dinheiro a ninguém. Mas a minha avó, que é quem me criou, teve um acidente de carro e sofreu um traumatismo crânio encefálico.

– Sua avó, não, sua tia – respondi automático.

– Como?

– Ué, não foi a sua tia que teve o traumatismo?

– O senhor quer saber mais do que eu?

– Ah, tá. Desculpe. Pode continuar.

– Ela está em estado grave e eu, que sou do Paraná, vim aqui pra ficar com ela e com o passar do tempo acabei ficando sem dinheiro até pra comer. Na verdade eu nem devia ter vindo pra cá porque faz só um mês que a minha esposa faleceu. Ela foi atropelada por um ônibus e teve traumatismo crânio encefálico. Uma tristeza. Ficou uma semana na UTI e veio a óbito.

– Sua esposa ou sua irmã?

– Que teve o traumatismo crânio encefálico?

– Sim.

– Não, foi minha mãe.

– Mas o senhor disse que foi sua avó, e que foi ela que te criou...

– Nada, quem me criou foi minha madrinha, Dondinha, lá de Ilhéus.

– E o Paraná?

– O que tem o Paraná a ver com isso, moço?

– O senhor não veio de lá?

– Ah, é, vim sim.

– Então, pra ficar claro, me diz quem está internada e quem morreu, afinal?

– De traumatismo crânio encefálico?

– Isso.

– Agora o senhor me confundiu todo.

– Quem está confuso sou eu, meu amigo! Desde que o senhor começou com essa história de traumatismo craniano pra todo lado.

– É traumatismo crânio encefálico.

– Que seja. Mas é muito estranho que todos os seus parentes sofram do mesmo diagnóstico.

– Não, de diagnóstico não tem ninguém na família sofrendo não. Com a Graça de Deus Pai.

Ficamos os dois um tempo calados, ali, só o sol por testemunha.

Depois, com um tom diferente, ele começou:

– A minha menina está lá do outro lado da avenida, me esperando, enquanto eu vim aqui ver se conseguia alguma coisa pra gente comer – falou isso pondo a mão esticada sobre a testa pra poder ver mais longe.

A menina avistou o pai de longe e deu um tchau lá do outro lado.

De repente tudo aquilo ficou triste.

Naquela linda manhã de sol, tudo ficou feio.

Eu já não ria das trapalhadas narrativas do homem.

Então eu fui até o carro e busquei a única nota que eu tinha dentro da carteira e lhe dei os 20 reais.

Ele agradeceu e, numa rapidez que meus olhos mal conseguiam acompanhar, sumiu entre os carros, atravessando a avenida em busca da filha.

Que o esperava, com a Graça de Deus Pai.

 

 

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Espadinha


Muitas histórias da minha infância no bairro de Ramos eu venho contando aqui, ao longo dos anos. Essa, em especial, eu já tinha esquecido quase por completo, e diz respeito a uma brincadeira que a gente fazia a partir de uma singela ocorrência, qual seja, a falta de luz na minha rua.

Não era incomum que de tempos em tempos faltasse luz em todo o quarteirão. Era uma sensação boa, de mudança de realidade, algo inesperado, que a gente passava a conviver e acabava por ver imagens que só eram possíveis sem a iluminação das lâmpadas.

Um exemplo eram os vagalumes. Eles apareciam de todos os lados, voando em sentidos diversos, no exato instante em que o breu dominava a nossa percepção. Era uma diversão incontida ver aquelas figuras tremeluzentes bailando como uma linha pontilhada ao vento, trazendo nas suas luzes o mágico poder de magnetizar os olhos de todos nós, meninos e meninas com cerca de 10 anos de idade.

Outra imagem marcante que me lembro é a das janelas das casas e dos apartamentos próximos. A gente ficava horas reparando o luzir bruxuleante das velas acesas nos cômodos vizinhos, vez por outra engolidas por sombras, talvez dos seus próprios moradores, e depois retornando fortes, emolduradas pelo retângulo luminoso das esquadrias, que pareciam apagar e acender diante dos nossos olhos.

A Espadinha, pois, que dá título à essa crônica, era um jogo que um dia meu pai “inventou”, justamente numa noite de falta de luz, quando a nossa casa estava cheia de amiguinhos a descansar do futebol, interrompido pelo apagão inesperado no nosso estádio-rua. Todos nós, cansados de tanto jogar, sentamos na beirada do portão lá de casa e estávamos esperando a iluminação se refazer, quando meu pai veio nos ensinar a nova brincadeira, de nome Espadinha.

Em círculo, com uma vela no centro, o primeiro passo era que cada um ganhava uma patente militar. Depois, o posto mais alto, o Espadinha, iniciava dizendo: “Espadinha passou pela guarda e notou a falta do sargento”. Aí o sargento prontamente dizia: “O sargento não falta, quem falta é o capitão”. Este já respondia, também de pronto, indicando que quem faltava era um outro posto, o major por exemplo, e o major dava prosseguimento ao jogo. Bem, perdia aquele que papava-mosca, ou seja, quem não respondia rapidamente ao chamado de falta.

Com a luz da vela incidindo em redor do círculo de crianças, os nossos rostos e também os gestos que a gente fazia ficavam submetidos ao movimento da chama, o que dava um efeito fantasioso de animação, como se estivéssemos num filme ou desenho.

Aquela brincadeira normalmente ia longe. Tarde da noite. Meu pai mesmo só ficava pra ajudar no início e, em seguida, a gente já sabia como terminar e reiniciar cada rodada. Quando a luz voltava todos nós fazíamos o mesmo coro de “Aaaahhh, que pena”, e cada um seguia para a sua casa, retomando a vida com luz.

Faz um mês, mais ou menos, eu estava na sala de casa vendo um filme e de repente a luz se foi. Achei que ia voltar logo e nem me mexi do sofá. Tinha acabado de anoitecer e algum pedaço de céu resistente teimava em se manter claro. A mobília dentro de casa já não tinha cor e opacas eram também as silhuetas dos quadros na parede e das estantes com livros de formatos confusos.

Supus ter visto um vagalume. E me assustei. Depois ouvi alguém dizer, com um sorriso no rosto, "quem falta é o tenente". Mas me virei e não tinha ninguém. Me dei conta, em algum momento, de que eu não tenho sequer uma vela em casa. Talvez fosse acolhedor rever a minha sombra de criança se mexendo entre a chama e a cortina. Mas logo desisti.

Depois de mais de meio século da Espadinha, intuí, sozinho, no escuro, os rostos queridos da minha infância. Do Ednelson, do Inglês, do Marquinhos, do Renatinho, do Jorge, do João Pimpão, do Carlinhos, da Cristina, da Anaíse... e do meu pai.

Levantei devagar, fui até o lado da estante e peguei o violão. Fiquei ali dedilhando um tempo qualquer. Perdido em solfejos. Toquei as músicas que eu sabia de cor, depois as que eu já nem lembrava mais. Ia acendendo e apagando os acordes, como a lâmpada de um flash, pontilhando no vento as notas em sequência e também os versos que voltavam um a um, lá dos anos 70, os cantores, as bandas...

Então, já não me assustei com o vagalume que passou.

Nem duvidei de ter ouvido “o tenente não falta”.

Tenho saudades do meu pai.

Como é bom tocar o violão no escuro!





domingo, 12 de outubro de 2025

A Placa

 

As obras de revitalização daquele museu consumiram um longo tempo. Todo o processo foi bem demorado e desde os primeiros projetos, cada vez que a sua equipe vislumbrava algum prazo, logo este insistia em se deslocar para mais longe. Os meses, os anos, as semanas, tudo tinha como tempero a própria angústia, pela incerteza do dia em que o prédio poderia voltar a estar aberto e funcionando como sempre.

Não só o fato de garantir os recursos do governo federal para todo o projeto, mas também os trâmites das contratações e das execuções, tudo tinha um período para acontecer e certos prazos estabelecidos. As licitações, por exemplo, demandavam sempre normas regimentais que envolviam as empresas participantes, com seus recursos e apelações que deviam ser julgados em tempos específicos, até a indicação final dos vencedores e, só então, os prazos de execução se iniciavam.

Naturalmente, quando as pessoas encaram essa realidade, surge a palavra burocracia como elemento que alude a atraso, retardo e tal, mas quando se trata de dinheiro público é imperativo seguir à risca todas as normas, em respeito ao justo apreço ao erário, que é, em suma, de responsabilidade de todos nós, ou pelo menos deveria.

No meio de todo esse trabalho, na barafunda que normalmente cerca uma obra pública, eis que surge o maior de todos os problemas: a mudança de governo. E que governo! Não bastasse a necessidade de isolar a área das obras, não fosse a necessidade do cuidado redobrado com o acervo, enquanto parede, teto e chão vão sendo restaurados, ainda tinha a ruptura institucional patrocinada pelos novos eleitos, cuja primeira canetada foi a extinção do próprio Ministério da Cultura.

Pois os escrevinhadores não sabiam sequer o que era um processo dentro da administração pública federal. Também não tinham ideia de como proceder para realizar os pagamentos mais simples, referentes às etapas de obras já executadas. A inviabilidade de um museu existir naquele contexto corria um risco inimaginável, principalmente diante da necessidade palaciana de se provar que a Terra era plana e de que a cloroquina era o remédio santo, enquanto que as vacinas, por sua vez, eram comunistas e transformariam as pessoas em jumentos, desculpe, jacarés.

O que era ruim, ficou bem pior. Para as obras, para o museu e para todos os alfabetizados. Militares e pastores viravam chefes da noite para o dia e, ao menor contato com estes infames, a sensação era de morte, de estar falando alguma língua remota, extinta ou interplanetária. A vontade era pular, sem hesitar, de algum canto da Terra plana, rumo ao infinito sideral.

Caminhando rumo ao calvário, os dias pareciam todos iguais para as entidades da Cultura. As intervenções em cada reunião com os novos mandachuvas eram deploráveis, dignas mesmo de choro. E isso não só em relação às questões técnicas e museológicas mas, com muito mais ênfase, quanto ao próprio uso do vernáculo.

A sucessão de absurdos sem precedentes na história desse país – ah, desculpe, essa é uma outra história – parecia não ter fim. Dava sinais de que aquelas aberrações jamais seriam superadas.

Num belo dia, eis que diante do término das obras que se aproximavam finalmente, o comunicado da direção central dava conta de que o ministro de sobrenome Terra – sem trocadilhos – viria participar da reinauguração do museu. Sim, o citado nobre estava disposto a deixar os seus ostentosos afazeres em Brasília e voar ao sul do país, para descerrar uma placa em evento pomposo, de uma obra que foi custeada, em sua totalidade, com recursos do governo anterior ao dele.

Um emissário então enviou os dizeres, as letras e as logos, tudo para a confecção da placa que seria instalada na entrada da edificação museal. No dia marcado, na presença dos correligionários locais, após um discurso titubeante, eis que a tal placa foi solenemente descerrada. E ela trazia o nome do belzebu.

Desmontado o circo político, entretanto, a volta à normalidade dos trabalhos era um alívio muito esperado. E nesse interregno ocorreu que, cada vez que um integrante da equipe do museu passava na frente da maldita, prometia aos demais que na primeira oportunidade... se tivesse uma chance... e a promessa ficava em suspenso, no ar. Não foram poucas as vezes que essa mesma cena aconteceu.

Foi então que o vigilante entrou na sala da chefe relatando que as fortes chuvas do final de semana, haviam causado grande infiltração em uma das janelas da entrada. Realmente era nítida a mancha da água que vinha de cima e percorria toda a parede até o chão. No caminho, por pura sorte, a mancha passava bem pertinho da placa. Sim, a placa da inauguração. E foi nesse mesmo momento que todos se entreolharam, mas nada foi dito.

Não se passaram muitos dias, talvez coisa de uma semana, ou um pouco mais, e a parede amanheceu novinha, pintadinha de branco. Surgiu assim lisinha, luminosa, pura e incólume, sem mancha de água, sem umidade, sem placa e sem parafusos.

Com alguma estranheza, mas sem a certeza se deveria ou não perguntar, um velhinho entrou no museu e logo percebeu algo. Ficou ali por algum tempo, disfarçando, olhando em redor, identificando a parede e, eis que vem um servidor e o cumprimenta, indicando o caminho para a visitação.

Ele sorriu com alguma malícia e perguntou, apontando para a parede:

– A placa... que estava... aquela da... daquele dia... que tinha o nome do...

A resposta veio curta e precisa:

– É nóis!

E mais não disseram ambos.

 

 


quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Latim

 

Bê e Tico se conheceram em São Paulo, trabalhando para duas empresas diferentes, na mesma obra. Os dois baianos tinham feito o curso de eletricista e depois de alguns anos resolveram abrir o próprio negócio, um ramo que estava em alta no fim da década de 1990, em razão do aquecimento da construção civil no país.

Assim que entraram na cidade foram abordados por uma viatura.

– Bom dia cavalheiros, o documento do veículo e a habilitação do condutor.

– Pois não, tá aqui na mochila. Pronto. Aqui está.

– Vocês avançaram um semaforum, ok? Bem ali atrás – apontou um dos guardas.

– Não, de jeito nenhum. Saímos da BR há pouco e não vimos nenhum semáforo até aqui.

– Semaforum, por favor. É latim. O senhor sabe latim? O senhor quer dizer que eu estou mentindo?

Nesse momento o outro policial perguntou ao chefe se queria fazer o teste. Ao que o outro respondeu que “não tinha necessidade de usar o bafometrum”.

– Hein? – surpreendeu-se o outro eletricista.

– Bafometrum. O senhor não estava dirigindo, então carpe diem aí quietinho, por obsequium.

– Oi?

– Chefe, se trata aqui de dois gentium ignorantis, cujo latim pra eles é o mesmo que grego.

– Pois então, como é que fica essa história agora? Vocês passaram no semaforum e eu vou multar.

Num breve silêncio constrangedor, Bê e Tico voltaram a questionar que ali perto não havia qualquer sinal de trânsito e que eles não tinham avançado, justamente por não existir nada.

– E essa placa aqui? Toda torta e sem o lacre?

– Mas o lacre estava no lugar. Foi o senhor que tirou com esse alicate aí.

– Ôpa, aí o senhor desqualifica o meu soldadum in totum. Ele foi apenas verificar e o lacre saiu.

– Não, eu vi na hora em que ele tirou usando o alicate.

– O senhor seja justus. Além de avançar o sinal, ainda por cima a placa sem lacre? O que nós podemos fazer? Certamente, se procurarmos generis causas, acharemos est mais delitum claus no seu veiculum.

– Mas...

– O delegadum vai abrir o processo e o veículo pode ficar apreendido no pátio por longus tempus, se o senhor me entende!

– Meu amigo, deixa eu dizer. Nós estamos vindo de São Paulo pra fazer um trabalho aqui no Rio. A gente foi contratado pra fazer a instalação elétrica em um conjunto de salas comerciais no Centro da cidade. Somos trabalhadores e fazemos tudo corretamente. Não passamos semáforo nenhum – tentou explicar o Tico, já nervoso.

Os guardas então foram até a viatura e voltaram com uma prancheta. Com uma caneta em punho davam voltas no carro apreendido, anotando aqui e ali, como se fosse uma vistoria do Detran. De vez em quando falavam em voz alta para serem ouvidos.

– Ipsis lorum.

– Data venia.

– Casus fortuitus. Delinquentium.

– Exatum. Sine dia, sine causa, sine qua non.

– Pra mim, erga omnes.

E toca de anotar no formulário da prancheta. Às vezes um deles botava a caneta na boca e meneava a cabeça em sinal de desaprovação.

– Olha, factis complicatus este o de vocês. Me digam de uma vez como a gente pode resolver isso, sem mais juris causa, ou seja, sem rigore juris, o que a essa altura não seria bom pra ninguém.

– Minha nossa. Estamos ferrados – disse baixinho o Bê, já contabilizando o prejuízo que viria.

De repente uma sirene forte soou, ao mesmo tempo em que trazia uma viatura cheia de luzes no teto. Os policiais tentaram correr, mas foram fechados pela picape oficial, que impedia também a saída dos demais carros, parados na beira da estrada.

Com gritos de mãos na cabeça, joelhos no chão e não se movam, os policiais, em questão de minutos, algemaram os falsos policiais e apreenderam a falsa viatura.

Aliviados, os dois amigos narraram a saga aflitiva que viveram desde que saíram da BR e entraram na cidade, com todas aquelas ameaças e simulações de infrações.

– E eles falaram com vocês em latim também?

Os dois amigos se entreolharam, percebendo, com alguma pilhéria, que aquela abordagem era algo repetitivo.

– Sim, a gente não entendia nada. Nem sabia que na academia da polícia se ensinava latim.

– Não ensina, meu caro. Esses caras são uns doidos varridos – disse o primeiro policial, passando a bola pro outro que saía do carro e vinha se juntar a eles.

– A gente prende e a justiça solta. É sempre assim. Até laudo psicológico eles têm pra se livrar da cana. São doidinhos e a gente ainda dá graças a Deus por eles não terem armas. Já pensou?

– E de onde vem esse latim todo que eles falam. Doutor, é um troço imponente que dá até medo.

– Nada, é tudo farsa. Tá tudo escrito nesse formulário que eles usam enquanto fazem a falsa vistoria no veículo. Aí vão lendo as frases com voz forte e cheios de postura.

– Isso mesmo – completou o outro policial. Tá tudo escrito nesse papel aqui da prancheta. Tudo em latim.

– Ufa, então graças a Deus que vocês chegaram a tempo. A gente não tem nem pro almoço e eles já estavam cobrando um suborno pra não levar o carro e também a gente direto pro delegadum...

– Delegadum?

– Isso.

– Esses caras são umas figuras mesmo. Olha, vocês estão liberados e, conforme eu disse, nem adianta fazer boletim porque a justiça solta a dupla em dois dias. No máximo.

– Verdade. Antes a gente até dava um pau neles, ameaçava e tal. Mas agora, nem isso fazemos mais.

– Então valeu e muito obrigado. Nós vamos indo porque temos muito trabalho ainda hoje.

– Ok. Boa sorte pra vocês.

– E mandem um abraço nosso pro delegadum...

– Pode deixar!

 



sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O Binóculo

 

Marcel Marceau é considerado o maior mímico de todos os tempos. É assim, com essa eloquente simplicidade, que começa a maioria das biografias, quando imprimem as primeiras definições sobre o gênio francês.  O grande ator da cena silenciosa e cheia de luz, um foco preciso em cada expressão de seu rosto, sempre em preto e branco.

Assim que eu soube que ia ter um espetáculo de Marceau no Rio de Janeiro, corri para a bilheteria do Teatro Municipal pra garantir o meu ingresso. Naquele tempo, nos idos de 1997, só se comprava entrada, pra qualquer evento, indo até as bilheterias que ficavam na lateral do grande teatro, na Avenida Rio Branco. Me lembro que eu fui com tanta antecedência que o rapaz teve de ir até o armário atrás da mesa pra buscar a tabela de preços, com os horários e os dias certinhos de cada sessão.

Trata-se de um dos maiores teatros do Brasil, com uma enorme boca de cena, histórica e suntuosa, assim como as paredes, os afrescos e aquele imenso lustre no centro do teto, tal como um sol a iluminar todas as galáxias. Eu pensei em tudo isso olhando o ingresso impresso nas minhas mãos e decidi que ia pedir emprestado o binóculo do meu pai.

Na noite tão esperada eu fui caminhando pelos andares, subindo as escadas, cruzando os grandes espelhos, os mármores rosas e as estatuetas, todas a nos acolher com um sorriso no rosto. O meu assento ficava na primeira fila da galeria, ou seja, no piso mais alto destinado ao público. Dali se via todo o salão abaixo, as frisas e os acessos, que não paravam de receber gente e mais gente.

Eu sabia que minha miopia não ia me permitir uma observação detalhada – como deve ser – daquele homem célebre e, enfim, um artista internacional reconhecido e ovacionado pelo mundo inteiro. Por isso, assim que me acomodei saquei o binóculo e fui conferir o foco, o centro do palco, a distância e tudo o mais, de modo a estar preparado para quando o mestre dos mímicos iniciasse a sua performance.

Do meu lado sentou um rapaz que não tinha mais do que 20 anos, se tanto. Enquanto eu percebia à minha volta um certo, digamos, exame crítico em relação ao meu equipamento, com os olhares de reprovação e desdém que se confundiam propositalmente, o rapaz abriu um enorme sorriso e, logo em seguida, me parabenizou por ter trazido o binóculo. Ao mesmo tempo me disse que lamentava por não ter pensado em fazer o mesmo.

Na minha cabeça já estava decidido que a ele ia ser ofertado o binóculo, claro, porque minha mãe jamais aprovaria uma falta de educação da minha parte, diante de uma oportunidade de ser gentil, como aliás o rapaz se mostrou assim que se acomodou na sua poltrona.

Quando a apresentação começou eu percebi, de imediato, que o binóculo não seria necessário. Era uma nitidez tão perfeita, a sua maquiagem junto com a iluminação cênica, que eu até me esquecia de buscá-lo apoiado no colo. O rapaz, certamente, usou muito mais do que eu, se embevecendo com as expressões do mímico a cada segundo.

Os olhares de reprovação das pessoas em volta foram, perceptivelmente, se alterando aos poucos. Em ato contínuo o rapaz, a certa altura, ofereceu o binóculo para uma senhora ao lado dele. Subitamente, se deu conta do equívoco e me perguntou meio sem graça:

– Desculpe, podia emprestar?

Eu apenas ri e fiz um gesto afirmativo, abrindo caminho para mais olhares ávidos por um segundo de proximidade com o artista, o que foi acontecendo naturalmente dali em diante.

O binóculo circulou por boa parte da galeria daquele teatro. Com cada olhar que eu cruzava, durante o espetáculo, me surpreendia com uma expressão de agradecimento, traduzida num cumprimento formal de cabeça. Enfim, o que antes era só reprovação, agora era amizade e gratidão.

Ao final da apresentação os aplausos ensurdecedores se repetiram até o terceiro bis. Por três vezes Marceau desapareceu atrás das cortinas, retornando em seguida, não sem demonstrar alguma surpresa e até mesmo acanhamento, diante daquele imenso auditório plenamente extasiado.

As pessoas iam ganhando o corredor da saída e passavam por mim agradecendo o empréstimo do binóculo. Estávamos todos felizes pela presença ali, naquela noite, naquele teatro.

O rapaz, em tom confessional, me segredou:

– Eu digo obrigado também. O binóculo, afinal, me ajudou a esconder algumas lágrimas.

Eu tenho guardado o encarte e a entrada daquele espetáculo até hoje.

No dia seguinte, um crítico de teatro escreveu no jornal: O silêncio, a luz e o movimento do mestre Marcel Marceau me fizeram rir e chorar e, hipnotizado e comovido, saí daquele teatro com uma lembrança eterna e um agradecimento imenso. Para sempre, um mestre.



sábado, 16 de agosto de 2025

O Fortão do Hidrômetro

 

Um dos mais cruéis efeitos colaterais das privatizações é que a conta sempre chega. E chega para a população, o usuário do serviço, seja ele qual for.

Foi o próprio síndico daquele condomínio de casas que anunciou, em assembleia, a mudança no modelo de fornecimento de água, após a privatização da empresa que até então era quem gerenciava o serviço, incluindo o aparato de esgotamento em todo o bairro.

O fato de não ter cobrança especificamente naquele endereço se devia ao rio que ficava bem ao lado dos muros da propriedade, dando aos moradores o benefício, não só da captação, mas também de todo o encanamento, desde a fonte, até chegar às residências.

Os moradores então se revoltaram com a nova cobrança e o síndico vinha tendo muito trabalho em explicar a nova situação.

– Mas se o rio continua lá; se a gente usa essa água do rio desde sempre e se os encanamentos estão todos funcionando de acordo, porque raios agora a gente tem de pagar só porque o serviço foi privatizado? – interpelou uma moradora.

A insatisfação foi se alastrando e ficou pior ainda quando chegou a ordem para que todas as casas fossem registradas na empresa e passassem a instalar um hidrômetro, como meio de medir o consumo, claro, pra gerar uma conta, algo que jamais tinha acontecido até então.

Muitos condôminos se negaram a fazer o registro, assim como também não aceitaram a instalação do tal hidrômetro. A empresa, por seu lado, informou que trabalharia com um período de instalação do equipamento de forma gratuita, mas que após o prazo estipulado, cada morador arcaria com os custos da colocação do instrumento, o que causou mais revolta ainda.

– Não vem pressionar a gente, não! Nós não faremos nada obrigados. Onde já se viu? A água continua ali correndo atrás do condomínio e agora a gente vai ter de pagar? De jeito nenhum – esbravejou outro inquilino.

Bem, o tempo foi passando e alguns moradores acabaram aceitando o hidrômetro. Muitos com medo de vir uma multa ou mesmo uma retaliação, como a suspensão do fornecimento, e vários ainda achando que a imposição da empresa era um beco sem saída, já que ela era agora a nova gestora do serviço.

Todo dia era possível ver uma equipe da concessionária instalando um novo hidrômetro aqui e ali. Com isso criou-se uma divisão entre os moradores que aceitavam e os que resistiam, estes se recusando em ceder às novas normas da companhia. Os dois lados até que conversavam, sempre um querendo convencer o outro da melhor estratégia. A empresa, por sua vez, esticou o período de instalação sem custos, mas a batalha era longa e estava sendo travada dia após dia.

Houve um momento em que começaram a chegar as denúncias de que a concessionária estaria instalando os famigerados hidrômetros à revelia dos moradores, ou seja, que as equipes de trabalho circulavam pelo condomínio e, diante da constatação da ausência do morador, instalava o equipamento compulsoriamente. Quando o sujeito chegava do trabalho já estava lá o troço todo pronto e a residência fichada na companhia.

Foi então que o caldo entornou de vez. Teve nova reunião com o síndico, chamaram a empresa, denunciaram na prefeitura, no Procon e, enfim, quase teve pancadaria no salão de festas ao encerramento do encontro.

O Maikon chegou mais cedo do trabalho naquele dia. Era um fortão, assíduo na academia do fim da rua, que era professor de Português da rede pública e um flamenguista doente. Assim que embicou o carro na sua garagem se deparou com uns homens, todos uniformizados, agachados no muro do vizinho, instalando o relógio da água, que era como ele chamava, pois fazia referência aos relógios de luz, de energia elétrica.

– Pode tirar. Pode tirar tudo isso daí. O meu vizinho não quer que instale esse negócio e já comunicou à empresa de vocês por escrito. Então pode tirar agora mesmo.

Os trabalhadores, atônitos, se olharam e até gaguejaram, tentando explicar alguma coisa.

– Não quero saber se a empresa mandou. Eu estou dizendo pra não instalar nada e ponto final. Aliás, vou dizer uma coisa pra vocês. Olha, vocês tiveram muita sorte, sabiam? Porque se vocês estivessem instalando essa joça na minha casa eu ia mandar bala em todos vocês. Eu garanto que não ia sobrar um vivo aqui nessa merda. Eu passo o revólver em cada um que estiver na minha casa fazendo algo que eu não queira. Vocês entenderam? Vocês não me conhecem e por isso estou avisando. Se a empresa mandar botar esse negócio na minha casa eu passo é bala em vocês. E eu não vou dar pra aleijar não. Vai ser pra mandar pro capeta de uma vez. Entenderam?

Os coitados, meio tontos, meio trêmulos, foram juntando o material, guardando as ferramentas e saindo de fininho, pedindo desculpas e jurando que tinham entendido o recado, certinho.

– Pode deixar, senhor. A gente entendeu tudinho e aqui a gente não mexe mais não. O senhor desculpe.

O professor fortão entrou em casa escondendo o riso. Aos amigos, mais tarde, chegou a confessar que se descobriu um excelente ator naquele episódio, pois, na condição de educador jamais achou que podia se passar por bandido ou algum personagem violento. Ele que jamais teve uma única briga no seu currículo. “O físico, sem dúvida me ajudou a compor o personagem”, frisou o fortão, enquanto lembrava daquele dia.

A minha irmã, que é moradora desse condomínio e conhece toda essa história e seus personagens, contou que, dias depois, teve um complemento importante no capítulo final dessa novela.

Do outro lado da casa do professor havia uma outra equipe trabalhando. Um carro passou dentro do condomínio e parou bem em frente. Os seus quatro ocupantes saíram e começaram a perguntar sobre o andamento das instalações, se faltava muita coisa e tal.

– Ah, ainda falta muito, sim. Um monte de gente ainda não aceitou. Mas a gente vai devagarzinho – disse um operário.

– Na minha casa, que fica aqui na rua detrás, já está tudo ok. Fizeram nessa semana na casa do meu amigo e na passada a ligação foi na minha – puxou conversa um outro passageiro.

– É verdade, bróder, foi bem rapidinho e ficou tudo certo. Mas olha só, vou avisar uma coisa pra vocês, na boa. Aqui nessa casa aqui não faz nada sem a autorização do morador não. O cara é assassino de aluguel, é matador, ganha a vida matando as pessoas por encomenda. Ele mora aqui tipo como esconderijo mesmo. Sujeito brabo do cacete e com ele não tem conversa, vai logo metendo bala. Tem um monte de morte nas costas. Fiquem ligados com ele.

– Vixe, senhor. Nem fala. Outro dia a gente estava ali no vizinho dele, bem do lado mesmo, que a casa estava vazia. Aí o sujeito chegou de carro e esculachou nós, na moral. Disse poucas e boas, ameaçou matar todo mundo, a gente e o escambau.

– E ainda por cima o cara é forte pra cacete, né? É um touro. A gente não vai vacilar e nem vai mais chegar perto da casa. Nada de trabalhar ali. Deus me livre.

– É isso. Com gente assim, da maldade mesmo, a gente tem que ficar longe, bem longe. Valeu, então bom trabalho pra vocês e boa sorte.

Posso dizer, depois de saber desses detalhes, que os quatro conseguiram, com muito custo, segurar o riso até entrar no carro e se afastar dos trabalhadores. Cada um, mais tarde, contou toda a conversa pro fortão e cada palavra era motivo pra mais risadas.

E foi justamente a minha irmã que me deu a real noção sobre aquela situação, ao relatar a conversa que teve com o vizinho, o tal professor fortão. Ela ficou intrigada de onde tinham saído aqueles caras do carro e como tudo aquilo aconteceu.

– Olha vizinha, na verdade os caras são todos amigos meus, lá da academia. Eu combinei com eles nesse dia pra falar com os operários. Assim que os vi ali agachados em outra casa pensei: vou dar um susto neles. Aí chamei os amigos e até emprestei o meu carro pra eles fazerem essa, digamos, abordagem, na linguagem dos canas. A gente deu muita risada naquele dia. Eles disseram que eu era matador de aluguel, veja só.

– Bem, pelo menos agora eles não te incomodam mais. Se soubesse que essa estratégia ia dar certo, eu teria feito a mesma coisa, pagava de matadora e tudo. Será que os seus amigos fariam isso de novo, dessa vez pra mim?

– Pô, vizinha! Tá falando sério?

E os dois se olharam um tempo, depois caíram soltos na risada mais uma vez, um tripudiando do outro.

– Dois matadores vivendo no mesmo condomínio! Já pensou?

 



quinta-feira, 31 de julho de 2025

Tchubaruba, o Audaz


Tchubaruba era um sujeito valente, dentro da sua categoria dos carros básicos, ou populares, como diziam. Tinha um motor 1.3 respeitável e com os seus quase 10 anos de lutas, circulando pelas estradas esburacadas desse Brasil, até que tinha um bom currículo e um vasto histórico de coragem e destreza, situações nas quais o seu talento sempre prevalecia com alguma altivez.

Era chuva, poça d’água ameaçadora, enchentes variadas que vinham após as marés altas, nada parava o meu Fiat Pálio azul de duas portas. Nas ladeiras íngremes ou em estradas empoeiradas e sinuosas, a minha confiança naquele distinto bólido era algo inabalável, e isso desde a sua festejada chegada.

Jamais ouvi dele qualquer reclamação acerca de trajetos, aventuras duvidosas ou intempéries intimidativas ao logo do caminho. Mesmo dormindo na rua quase todas as noites. Valentia era o seu segundo nome e tenho dito!

Foi com todos esses predicados que eu levei o eminente automóvel até uma concessionária para uma avaliação, com vistas a uma possível troca por um modelo mais novo. Os dois inspetores deram várias voltas em torno dele procurando algum defeito, uma mossa que fosse, uma palheta gasta do para-brisa, um desalinho na sua carroceria azul escuro. Nada. Depois abriram as portas e verificaram tudo que era possível, assoalho, teto, revestimento dos bancos e até o rádio que, já naquela época, tinha uma entrada exclusiva para Mp3Player, um luxo tecnológico que muito Picasso, dos grandes, não tinha.

Enfim, a avaliação foi ótima. A loja pagou um bom preço na troca por um modelo um pouco mais novo e passamos a preencher a papelada do financiamento, assim como dos demais documentos que seriam providenciados pela concessionária. Marcamos para dali a uma semana e eu iria apenas deixar o Tchubaruba e pegar o carro novo, ainda sem nome de batismo.

Naqueles dias eu conversei muito com ele, falei que era o ciclo da vida, que ele iria em breve conviver com um outro dono, que também seria bacana com ele, que seriam uma boa dupla por um bom tempo e eu disse tudo aquilo que se diz a um amigo de longa data.

Na data combinada o vendedor veio me entregar as chaves, o manual e o carro novo, me mostrando o motor ao abrir o capô, o pneu reserva, o triângulo e me alertando para alguns dispositivos no painel de instrumentos, suas luzes e seus significados. No final, disse que eu ia sentir muita diferença ao dirigir, simplesmente porque esse carro andava bem mais.

– Opa. Peraí. O meu andava muito bem. Sempre andou, se o senhor quer saber!

– Ah, mas esse novo vai andar muito mais, tem muito mais motor. O outro já era um carro mais cansado e tal.

– De jeito nenhum. O Tchubaruba anda e anda muito. Não era um carro velho, nem cansado, não. O senhor respeita o meu carro antigo, viu?

– Bem, eu estou apenas elogiando o seu carro novo. Não quero desprezar o outro, mas na verdade você mesmo vai sentir a diferença. Vai ser da água pro vinho.

Eu já tinha ficado bem bravo com o panaca do vendedor, desfazendo do meu Tchubaruba, e resolvi encerrar aquela conversa ali mesmo, antes que mandasse o tal pros quintos dos infernos. Nem mesmo o risinho de sarcasmo dele, na despedida, me tirou o bom ânimo. Ele que se lixe.

Realmente o carro novo era muito bom. Era novo. Seminovo, vai. Mas era novo. E alguma diferença tinha de ter, naturalmente. Mas o melhor de tudo foi quando eu recebi em casa, alguns dias depois, uma multa de trânsito. Era uma multa por excesso de velocidade, numa estrada na saída da cidade. E era uma multa do Tchubaruba. Não sei explicar com que alegria eu recebi aquela multa.

Aqui, suspeito que o leitor deve estar me achando um doido varrido. Alegre por receber uma multa? É isso mesmo? Mas a explicação virá a seguir.

De posse da multa faceira, que trazia inclusive a foto da traseira do Tchubaruba, com sua placa devidamente legível e sem interferências, fui eu até a concessionária. Claro, porque o carro não foi multado comigo, mas sim após eu tê-lo deixado na loja, efetivando a troca devida. Ou seja, a responsabilidade era da loja, ou do novo dono, caso já houvesse um.

Entrei triunfante no saguão e fui até a mesa do vendedor, aquele, o panaca. Mostrei a multa e ele ficou olhando, olhando, digitou no computador alguma coisa, que eu presumi ter sido a placa, e conferiu a foto do radar.

– Ok. Realmente é uma multa. Pode deixar conosco que vamos resolver.

– Sim, é uma multa. É uma multa por excesso de velocidade, senão me engano.

– Ah, sim. É verdade.

– Para um carro que não anda bem é uma baita surpresa, não é?

– Isso acontece. Motorista com o pé pesado.

– Motorista com o pé pesado e dirigindo um carro que aceita pisar fundo pois o motor responde adequadamente.

– Foi na estrada. O radar registrou a foto e já viu.

– Exatamente. O limite ali era 100 e ele passou a quase 130Km/h. Que lindo, né? Um carro velho, cansado, com um motor muito rodado... Sabe como é?

O homem foi murchando. Deve ter se arrependido do que falou sobre o Tchubaruba no instante em que viu a multa nas mãos. E eu, enfim, não queria tripudiar do pobre. Podia falar ali, por horas a fio, do quanto era bom o meu bom e velho amigo Tchubaruba.

Mas assim como aquele inesquecível carro, eu também tive um dedo de compaixão do vendedor e somente agradeci, já indo embora.

Eu levava o mesmo risinho sarcástico que ele tinha me oferecido da outra vez.

Mas cuidei pra que ele não visse.

Pobre homem atônito, sem rumo, naquela mesa, olhando uma multa improvável.

Eu me senti um vencedor.

Mas a vitória foi do Tchubaruba, o audaz.

 

  

Ps – o título dessa crônica é uma citação a Toninho Horta e Fernando Brant, que compuseram a música “Manuel Audaz”, em homenagem a um Jipe amarelo histórico, ano 1951, de propriedade de Brant.

 

 


segunda-feira, 21 de julho de 2025

Gina e a Tevê

 

Nas primeiras horas da segunda-feira, assim que eu entrei no escritório, já lá estava a Gina, eufórica por contar as novidades do fim de semana. Ela, publicitária, e eu, jornalista, trabalhávamos juntos no setor de Marketing e ela tinha vindo de Sampa pra Salvador, com todo o entusiasmo de, pela primeira vez, viver fora da sua cidade e longe da família. Estávamos no verão e o ano era 1993.

Os demais colegas de trabalho ainda não tinham chegado e, por isso, a Gina preferiu esperar um pouco e contar a tal novidade com todos presentes, o que foi uma tortura pra ela, que não se continha.

– Me diz ao menos do que se trata. Se é alguma coisa grave; se você vai pedir demissão e voltar pra São Paulo, sei lá – eu apelei, com alguma angústia.

– Tá. Eu vou revelar pra você. Depois conto de novo pra todo mundo. É que eu finalmente comprei uma tevê. Encontrei uma grande liquidação numa loja ali do shopping e não resisti. Paguei e levei pra casa na hora. Tinha um monte em promoção e algumas, inclusive, sem controle remoto. Essas eram bem mais baratas porque com a invenção recente do controle, as pessoas não querem mais os modelos sem a nova tecnologia.

– Mas, Gina, você nem gosta de ver tevê? Sempre disse que não tem nada de bom na telinha, principalmente aqui na Bahia, onde nem os jornais locais prestam. Como que agora passou a gostar?

Nesse momento foram chegando outros colegas do setor e cada um ficava mais surpreso com a compra da colega. Uns pela surpresa da aquisição em si, já que ela sempre disse que detestava tevês, e outros pela decisão de, para pagar pouco, optar por uma tevê sem controle remoto. “Aí já é demais”, alguém disse. Já os que estavam longe dela apenas balbuciavam: “Essa Gina é doida de pedra. Sem controle remoto? Uma tevê. Tevê!”.

Estando a plateia devidamente formada a publicitária pôde finalmente fazer a sua explanação aos colegas incrédulos, explicando as suas motivações e intenções.

– Vejam vocês, eu tenho muitas questões em relação ao sedentarismo da vida moderna. Esse é o mal que assola grande parte da humanidade. As pessoas não se esforçam pra nada e tudo na vida é facilitado pra que a gente só precise apertar um botão. Além disso, não posso dizer que sou natureba, vegana ou algo assim, mas procuro comer alimentos saudáveis e tal. Então, tudo isso pra dizer a vocês que o que eu fiz combina com a minha postura de não me afundar no sedentarismo e que, afinal, levantar da cadeira pra trocar de canal vai me fazer muito bem, mental e fisicamente, isso sim.

Como alguém podia argumentar algo diante de um discurso daquele? A gente até entendeu o lado dela, a partir dessas ponderações e todo o seu esforço pra não sucumbir aos ditos maus hábitos da contemporaneidade. Ela decidiu por comprar uma tevê, que bom, pois trata-se de uma pessoa que sempre falou negativamente do aparelho e a gente até se animava de contar as coisas que víamos nos programas porque tudo parecia novidade pra ela. E entre nós ela era “a colega que não tinha tevê em casa”, uma distinção alegórica que chegava a conter alguma graça.

“Tempo, tempo, tempo, tempo”. O tempo cantado por Caetano ouve, altivo, o elogio supremo. “És um dos deuses mais lindos”, diz o poeta.

O tempo cuida de nos assentar as ideias, propor novas trajetórias, mostrar outras estratégias. Enfim, o tempo passou pra mim, pros colegas de trabalho e pra nossa amiga Gina. Ela até resistiu um bom tempo. Um tempo até por demais elástico. Talvez pra não dar o braço a torcer. Não reclamava abertamente, mas a gente sabia que uma hora aquele controle remoto da tevê ia fazer uma baita falta.

Foi então que, durante um almoço, algumas semanas depois, ela disse que vinha dormindo mal ultimamente. Acordava muito à noite e seu sono era sempre leve. Somente depois de muita conversa ela admitiu, quase que em segredo, que passou a dormir com a televisão ligada e que simplesmente deixava ligada por que iluminava o quarto e que, enquanto estava assistindo, o sono teimoso sempre chegava de mansinho. Ela não se referia abertamente ao problema de ter de levantar pra desligá-la, mas a gente intuía a real situação, sem pressionar muito a coitada.

Na verdade, nem ela nem nós jamais levamos o caso da tevê sem controle remoto para o lado da crítica ou do julgamento. Nunca alguém falou que ela estava errada ou que foi uma loucura aquela compra. E isso ajudou a dirigir as conversas para um campo leve, até que finalmente chegou ao ponto em que todos já estávamos rindo, junto com ela, pelo imbróglio que aquela novela teria criado na cabeça de todos nós. Enfim, o passo seguinte foi a rodada de sugestões, sempre bem-humoradas, no sentido de indicar alguma solução para tudo aquilo.

A realidade de passar as noites sem dormir direito tinha de acabar. Aquilo não era vida. Alguma coisa devia ser feita. Era a nossa preocupação do dia a dia, a tal ponto que as pessoas, no meio da tarde, iam até a mesa dela pra dar alguma dica, apontar alguma saída, uma gambiarra que fosse, pra que a colega tivesse uma relação melhor com a sua famigerada televisão.

Eis que numa singela segunda-feira chega a Gina, de novo, ávida por nos contar a solução encontrada.

– Gente, eu achei uma boa solução. Comprei uma extensão elétrica bem longa e aí passei a ligar a tevê nela. A tomada fica na cabeceira da cama, onde eu ponho o rádio relógio. Quando eu sinto sono eu puxo o fio da tomada e pronto, desliga tudo. Mesmo nas noites em que eu esqueço e pego no sono, assim que acordo no meio da noite, incomodada com a luz, é só me virar, puxar o fio e voltar a dormir como um bebê.

Rolou um certo entreolhar de indagação mas, ao final, todos nós ficamos aliviados e demos boas risadas dela, enquanto aprovávamos a sua solução. Alguns lembraram que ela devia aprender a lição e nunca mais comprar nada sem controle remoto. “Mesmo que seja de graça! Onde já se viu desprezar a tecnologia assim?”

Ela ria meio sem jeito e dizia que tinha aprendido sim, a lição.

Até que alguém perguntou sobre a segunda parte.

– Que segunda parte, gente?

– Ué, agora tem que resolver como vai fazer pra trocar de canal, sem ter que levantar da cama. Desligar já tá resolvido.

– Ah, isso não vai ser preciso, não.

– Como assim? Você não troca de canal?

– Bem, gente, vou explicar: é que como eu também não tenho antena, a minha tevê só pega um único canal. E eu digo a vocês, sinceramente: Graças a Deus que é assim!

E a gente repetiu em coro:

– Graças a Deus!

 

 


sábado, 28 de junho de 2025

Seu Ari

 

Era uma rua lisinha e plana, de asfalto recém colocado, os meios-fios branquinhos e alinhados. Tudo perfeito. Nas tardes de sábado passavam poucos carros e até juntava gente pra ver o nosso futebol. As torcidas ficavam no cantinho da calçada, mas muita gente assistia da própria janela mesmo, uma fileira de casas baixinhas como reza a paisagem singela de todo bom subúrbio.

Tinha dias em que podíamos jogar de tênis, mas na maioria das vezes a peleja era descalça mesmo. Tudo dependia da maioria dos meninos. Assim, pra igualar as condições, ou era todo mundo de tênis ou de pé no chão. E ainda, um time com camisa e o outro sem. As balizas eram chinelos, às vezes caixas de madeira, de papelão, ou outra coisa qualquer que servisse de marcação.

No casarão que ficava quase na esquina, um pouco depois da linha do gol, morava o Seu Ari. Era um sujeito magrelo, bigodinho suspeito e fino, cabelos com Gumex esticados pra trás e uma enorme antipatia pelo mundo. Sim, o velho nutria uma pitoresca e espontânea aversão pela humanidade, principalmente os vizinhos e, mais ainda, por vizinhos que jogassem bola na frente da sua casa. O homem era insuportável. Como diz um amigo meu: “um cano de passar bosta, de tão grosso”.

A nossa sorte, ou melhor, a sorte do nosso “estádio de futebol” era que os muros da casa do Seu Ari eram relativamente baixos. Assim, quase sempre alguém pulava o dito obstáculo e recuperava a bola sem que o dono da casa sequer suspeitasse. Era um pé dentro e outro fora da casa, com a bola nas mãos.

Isso acontecia, naturalmente, quando o ícone rabugento não estava na varanda. Nesses casos ele ficava ali só esperando a bola cair e no minuto seguinte cuidava de dar-lhe um fim, tirando das nossas vistas e levando pra dentro de casa, sumariamente. A gente chamava, gritava e o velho nem tchum pra nós. Era mais uma bola que se ia. Muitas vezes aquilo era o fim do jogo. Outras, por algum milagre, um santo qualquer trazia outra bola, igualmente recebida com muita festa.

Mas um dia, em uma tarde especial, toda essa histórica convivência mudou completamente. Estava o nosso vizinho ranzinza de prontidão ao lado do portão de casa, assistindo ao jogo. Assistindo é modo de falar, porque ele estava ali atento, premeditando a hora em que a bola cruzasse o seu muro para dar cabo a alguma nova maldade. Dessa vez ele havia acabado de trabalhar no pequeno jardim e estava ainda com as ferramentas na varanda.

Deu mais um minuto e pronto, lá se foi a bola. E como ele estava ali ninguém pulou o muro, claro. A garotada apenas pediu a bola de volta. O velho ficou em silêncio, jogou o cigarro fora e, lentamente, foi até o meio do jardim, buscou a bola e trouxe pra perto das ferramentas. Ali ele escolheu uma enxada e a posicionou mirando a nossa bola. Na mesma hora todo mundo gritou pra ele não fazer aquilo, prometendo não deixar cair lá de novo, mas não teve jeito. Em câmera lenta todos nós pudemos ver em detalhes quando ele ergueu a enxada, mirou a bola e... acertou a própria canela.

O barulho que fez foi horrível. E mais horrível ainda foi a quantidade de sangue que aquela canela fina, que era só osso, conseguiu expelir. Uma sangueira danada tingiu a varanda e, em poucos minutos, o velho Ari estava deitado no chão gritando de dor.

A gente ficou um minuto sem saber o que fazer, um olhando pro outro e, não sei de onde, surgiu algum vizinho, adulto, que pulou o muro e foi socorrer o velho. Lá de dentro ele começou a pedir coisas e alguém saía em disparada em casa pra buscar. Pediu panos, gazes, depois tesoura e antissépticos, sei lá, tanta coisa, até que decidiu pedir pra alguém trazer um carro pra levar o coitado até um hospital, sob o risco de o rabugento morrer ali mesmo.

Foi uma correria dos diabos a partir daí. Cadê o carro? Como vai abrir o portão da casa? Quem vai junto? Um furdunço generalizado até chegar a cena que eu lembro bem, e que era um monte de gente pulando pra dentro da casa, depois o esforço da turma levantando o ferido pra também passá-lo por cima do mesmo muro, e, finalmente, o trabalho pra botar o homem no carro.

Toda a vizinhança passou aquela tarde de sábado esperando por notícias do Seu Ari. No final estava todo mundo com pena dele, coitado. As notícias não chegavam e a aflição só aumentava. Quem ouvia a história dizia que era loucura se ferir daquele jeito, veja você, furar a bola com uma enxada!

Uma eternidade e um dia depois, eis chega um carro trazendo o vizinho abatido. Atrás dele o motorista que o socorreu e que agora o auxiliava a entrar em casa. A filha do Seu Ari, que morava em outro bairro, também amparava o pai e trazia as receitas com os remédios dados no hospital. Ela já estava ciente de toda a ocorrência e enquanto entrava em casa disse que depois queria falar com a gente.

De repente aquela casa, até então intransponível para todos ali, passou a vivenciar um entra e sai de gente, todo mundo querendo ver como estava o estado de saúde do Seu Ari e se ele precisava de alguma coisa. Uma vizinha que morava na vila ao lado trouxe um pote com sopa. Uma outra chegou com um par de muletas dizendo que o idoso poderia usar o quanto precisasse e que não tivesse pressa pra devolver.

Até que a filha do Seu Ari finalmente veio até o portão. Com os olhos marejados passou a agradecer a todos pelo socorro ao pai dela. Disse que ele é uma pessoa difícil, mas que se não fosse a iniciativa de levá-lo ao hospital talvez ele não sobrevivesse ao ferimento, pois que foi grave e na idade dele poderia ter sido fatal.

Daquele dia em diante, não tinha uma única vez que algum vizinho fosse ao mercado que não parasse na porta do Seu Ari pra perguntar se ele queria alguma coisa. Da padaria, as pessoas traziam pães e outras coisas pra ele tomar café. A gente via que ele tinha muita dificuldade pra se locomover com aquelas muletas e por isso todo mundo queria ajudar.

Nos dias de futebol, assim que começava o jogo a gente percebia que vinha o Seu Ari lá de dentro da casa e, com alguma dificuldade, destrancava o portão grande da garagem. Depois nos avisava que estava só encostado. Quando a bola caía lá dentro a gente entrava, cumprimentava o velhinho na varanda, pegava a bola e agradecia.

Ele também agradecia.

E nos agradeceu até morrer.