sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A Senha


Djair era o chefe e Alcides o comparsa. Estavam os dois na rua caçando oportunidades pra roubar alguma coisa, de alguém ou de alguma loja, quem sabe um motorista desatento com o celular ou um relógio pra fora da janela, enfim, algo que lhes rendesse algum trocado ao fim do dia exaustivo de trabalho. Sim, para a dupla isso era um dia de trabalho.

As maiores desvantagens desses dois eram, primeiro que não tinham uma arma. Sim, porque com uma arma na mão pode-se exigir, com muito mais facilidade, que alguém lhe ceda a bolsa em troca da vida, evidentemente. A segunda era a falta, ampla e completa, de alguma inteligência. Como dizia o meu pai, qualquer um dos dois que tropeçasse, na mesma hora lhe cresceriam rabo e enorme orelha, tamanha a propensão para o animal que ilustra o imaginário da tal ausência de intelecto.

Andavam a perambular os dois pelo Centro da cidade, até que entraram num banco. Não dava pra declinar da temperatura convidativa daquele ar-condicionado. Eu morreria aqui mesmo, pensou o Alcides, ajeitando o topete engomado que lhe caía na testa. Naquele clima de montanha, analisando o ambiente, quase que escolhendo a vítima, eles pegaram senha e sentaram junto dos idosos em uma das cadeiras que também são alinhadas como uma fila, justamente para falar com o gerente.

O seu Inocêncio, quando chegou a sua vez, deixou cair um envelope que ficou escondido no canto da cadeira, ao lado do braço. Mais rápido do que pensar num golpe de estado, Djair surrupiou o envelope e o mocozeou devidamente, como fazem aliás os experientes meliantes.

Pra disfarçar, foram até o bebedouro, sorveram uma água geladinha, cumprimentaram o segurança e saíram calmamente do banco. Um guarda disse ao outro que o bandido se reconhece pela preocupação com os guardas. “Estão sempre nos olhando, os nossos movimentos”. O outro respondeu que tinha percebido um deles nessa atitude suspeita. “Aquele que tinha cara de fuinha”. Ao que o outro riu e finalizou dizendo que ficou na mesma, pois “ambos tinham uma baita cara de fuinha”. E a risada teve de ser contida, afinal estavam em serviço.

Naquela mesma manhã, de posse do envelope do seu Inocêncio, a dupla engendrou o golpe. Não o de estado. O do seu Inocêncio, cujo envelope “perdido” no banco continha não só o cartão de crédito, mas também os dados da sua conta, o nome do gerente e o seu telefone. Mas, seu Inocêncio...?

– Alô, boa tarde. É o senhor Inocêncio?

– Boa tarde. Sim, sou eu.

– Seu Inocêncio, o senhor perdeu o seu cartão do banco hoje pela manhã, não é mesmo? Aqui, quem está falando é o seu gerente. Nós achamos o seu cartão dentro do terminal de saque eletrônico. Estava dentro do próprio caixa.

– Ah, que bom que vocês o encontraram. Que alívio. Eu posso ir até aí buscar, mais tarde?

– Olha, seu Inocêncio, isso não vai ser possível. É que dado o sinistro, a perda do cartão, nós vamos ter de cancelar este e lhe fornecer um outro. Mas é inteiramente gratuito, entendeu?

– Ah, sim. Outras vezes que eu perdi o cartão e depois achei, aqui em casa mesmo, ele teve de ser cancelado também.

– Isso mesmo. É o procedimento. Mas seu Inocêncio, pra cancelar esse cartão e fazer a solicitação do novo eu preciso confirmar uns dados seus, ok?

– Ok. Perfeitamente. Quais dados?

– Bem, o número da sua conta, a agência e número do cartão.

– Espere um pouco que eu tenho tudo anotado aqui na minha agenda.

– Pois não, seu Inocêncio. Não tenha pressa.

Depois de passar os dados que os golpistas pediram, chegou a encruzilhada final, ou seja, a hora de pedir a senha. Cabe aqui explicar que os dois bilontras, os girigotes, os verdadeiros trafulhas estavam já em outro caixa eletrônico, que ficava na saída da galeria de lojas, um local ermo àquelas horas, prontos pra efetivar o saque com o cartão do coitado do seu Inocêncio. Faltava só a senha, quando aqui retomamos o diálogo infame:

– Obrigado pela confirmação dos seus dados, seu Inocêncio. Agora, para o cancelamento desse cartão, precisamos da sua senha.

– A senha é... Margarida.

Tapando o microfone do seu celular, o Djair sussurrou ao comparsa:

– Digita aí Margarida, ô Cid.

– Ok. Peraí. Mais um pouco. Senha inválida.

– Ô seu Inocêncio, a senha deu inválida. É a sua senha desse cartão aqui que o senhor perdeu que a gente quer. A senha pra saque da sua conta. Entendeu?

– Ah, sim. Desculpe. É verdade. Margarida é a senha pra entrar no banco pela internet, só pra consultas de saldo e tal.

– Ok, seu Inocêncio. E qual é essa senha então? A do saque, viu?

– A senha é Meu Piiiiiiii...

– Ai caceta. Esse velho é maluco – disse o Djair pro Cid, tapando de novo o microfone. Meu Piiiii? Que merda é essa? Ô Cid, eu acho que é algum palavrão isso. Só pode ser. Meu Piiii...? Mas que Meu Piiii? Olha, digita aí meu pinto, meu piru, pau, sei lá. Esses velhos são todos uns tarados de merda. Vai, digita essa joça logo.

– Não tá dando certo não, chefe.

– Ô seu Inocêncio. Essa senha de Piiii aí não tá certa não. Se for um palavrão, pode falar sem medo, viu? Fala direito senão não vou poder cancelar o seu cartão.

– Mas é o Pi. É isso mesmo, como eu falei. É o número do Pi até a quarta casa decimal. Aí, como a senha tinha que ter letra também, eu botei o “Meu” na frente.

– O quê? Como assim, “botou o seu na frente”, seu Inocêncio? Que brincadeira é essa? Botou o seu o quê? O senhor me respeite. Eu sou o gerente.

– Não. Botei o Meu na frente do Piiii. Você não sabe qual é o número de Pi não?

Tapando o microfone mais uma vez, ele pergunta pro topetudo do Cid:

– Ô Cid, seu ameba, qual é o número do Pi? Tu sabes de cor?

– Chefe, vou dizer uma coisa triste para o senhor. Eu não sei nem o número da minha mulher. Quando eu tenho que ligar pra ela eu só busco o nome na lista e ligo. Não sei de cor o número de ninguém. Ainda mais desse tal de Pi aí. Eu sei lá quem é esse cara? Vai ver é gente lá do grupo dos “biquinis pretos”? Essa turma é da pesada! Bandidagem geral mesmo.

– Porra, esse velho já tá me tirando do sério. Acho que vou dar “umas porrada” nele até ele falar a bosta da senha.

– E o plural, chefe, onde fica?

– Ah, Cid, tu vai tomar no cu logo, seu merda.

– Eu só estava ajudando. Nossa! Que violência! Não é umas “porrada”. É umas “porradas”, no plural, concordando com o...

– Chega dessa bosta. Vou voltar aqui pro nosso plano. Foco! Foco!

Djair chamou pelo seu Inocêncio algumas vezes, mas ele não respondeu. Não parecia ter caído a ligação, por isso ele ficou esperando um tempo. Até que a voz surgiu:

– Alô.

– Oi, seu Inocêncio. Pois é. A sua senha não deu certo de novo. Vamos tentar mais uma vez?

– Acho que não é mais preciso, meu amigo. A minha filha chegou em casa pro almoço e disse que já ligou pro banco e cancelou o meu cartão. Me deu a maior bronca quando eu contei que o tinha perdido. Tá aqui uma fera comigo!

– Talquei, seu Inocêncio. Então manda um abraço pra vagabunda da sua filha. E que se foda o senhor também, talquei?

– Igualmente para o senhor e os seus.

E desligou.

 


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O Mafioso, o Segurança, a Filha e o Amante

 

Eram quase uma família. O segurança Donato trabalhava para o mafioso desde que este chegou da Itália, fazia mais de 30 anos. Seu nome era Alfredo, dom Fredo para todos aqueles que tiveram o desprazer de o conhecer.

Uma figura abjeta, peçonhenta e cruel, que carregava uma grande mágoa por não ter tido um filho, e sim uma filha. Por esta razão, e por tantas tentativas vãs de iniciar a menina nos negócios da família, já tinha dado o caso por perdido. Agora a ideia era encontrar um genro à altura da sua, digamos, veia comercial, ou seja, um bandido inteligente o bastante para casar com sua filha e, ao menos, protegê-la nessa vida.

Dom Fredo estava sempre viajando. Não tinha uma cidade com tamanho bastante para os seus negócios que ele não conhecesse. Desde que chegou aos Estados Unidos, sua vida era detectar novos clientes, parceiros ou nichos para onde pudesse expandir as suas negociatas. Não se sabia bem qual era a sua atuação, com quais elementos ilegais ele tratava, mas drogas, bebidas e posse de terras alheias eram os seus principais interesses financeiros país afora.

A filha do mafioso tinha pouco mais de 20 anos quando, uma tarde, na hidromassagem que ficava ao lado do jardim, perto da quadra de tênis, quase se afogou. De repente, se descuidou ao encostar na parte de trás da banheira, escorregou e o ralo de filtragem de água agarrou os seus cabelos. Ficou se debatendo por alguns minutos com os pés fora d’água até que um segurança, um dos mais novos da equipe, a resgatou, não sem antes ter de fazer uma força descomunal contra a máquina.

Quando conseguiu tirar a moça da água, veio junto, embolado ao seu cabelo, todo o ralo, as mangueiras e também o motor de sucção que compunha o sistema de filtragem. A hidro ficou totalmente danificada e o susto dos empregados que acorreram ao jardim foi enorme, seguido por um também enorme alívio, de ver a menina voltando a si, depois de um pequeno esmaiamento, ou piloura, como queiram.

Pouco tempo depois, sem qualquer esforço, dom Fredo descobriu que a menina estava de caso com o segurança, este mesmo que lhe salvou a vida. Bastava que ele viajasse e a menina dava um jeito de estar com o rapaz. Jantavam juntos, assistiam a filmes até altas horas da madrugada, ouviam música e dividiam uma vida paralela. Contavam, é claro, com a boa vontade dos demais empregados, que notaram que a moça mudou o seu comportamento desde que conheceu o segurança.

Antes calada e sombria, sem interagir com quase ninguém naquela casa, a moça passou a ser amável, conversava com as camareiras, as arrumadeiras. Até a governanta ajudava a encobrir o relacionamento da menina diante do brilho que a pobre trazia nos olhos, coisa que desde a morte da mãe ninguém jamais tinha visto.

Por sua vez, querido por todos os empregados, não só pelos colegas seguranças, o rapaz de repente passou a trazer no semblante a preocupação de que logo o pai da moça ia descobrir tudo. Donato, o braço direito do chefe maior, se esforçava pra ajudar, mas o velho tinha outros meios de saber o que estava acontecendo “na sua própria casa”, conforme sublinhara ao pé do ouvido do segurança-amante.

A questão era como andar no fio da navalha. E todos passaram a se preocupar. O jovem casal aventou a possibilidade de falarem juntos com dom Fredo. A menina principalmente exporia a situação, um acaso do destino, uma paixão súbita e uma convivência até então de muito entendimento e companheirismo. Os dois se gostavam e se davam muito bem, se divertiam juntos e um ansiava pela companhia do outro. Era um encontro perfeito de almas. Algo sublime.

– Passo a navalha na garganta desse moleque e em dois minutos liquido o assunto. Que atrevido, que acinte, onde já se viu um merdinha de um segurança... E essa minha filha desmiolada também vai ter a sua lição. Donato, amanhã cedo avise aos dois que na volta de Chicago quero ter uma conversa com a dupla. Chego na quarta-feira de madrugada e já bem cedo, ao amanhecer do dia, quero dar cabo desse assunto. O mal, já dizia meu tio Arturo, O Caolho, corta-se pela raiz.

O coitado do Donato nem falou nada com a menina. Assim que comunicou ao jovem segurança já foi aconselhando que a fuga seria a melhor escolha e que talvez sair do país fosse o mais prudente nesse caso. Que a vida dele era muito mais importante do que o romance com a filha do dom Fredo e que ele pusesse a cabeça no lugar.

– O senhor acha mesmo que não vale a pena nem conversar com ele? Mesmo a filha dele também pedindo, argumentando?

– Você não conhece o chefe. Em dois minutos ele mete uma bala na sua cabeça e chama alguém pra limpar o sangue do tapete. Quanto a filha ele até que teria alguma questão a relevar, mas vive dizendo que ela só dá problema e eu nem duvidaria se ele se livrasse dela também de algum jeito.

– E se então fugíssemos nós dois?

– Ah, meu caro, como vou te dizer isso? Na primeira esquina da dificuldade ela voltaria rastejando pra casa do pai. Não se iluda. A menina nunca precisou fazer algo mais do que estalar os dedos pra alguém trazer o mundo numa bandeja de prata. São mundo distintos. Por isso, trate de cuidar da sua vida daqui pra frente e dê graças a Deus pela oportunidade de sair vivo dessa situação. Se somar a idade de todos os seguranças dessa casa não daria nem a metade do número de assassinatos que esse Capo já ordenou.

A conversa foi cada vez mais se encaminhando para um cenário que evidenciava o esgoto humano. O rapaz se encolhendo em sua resignação, era de dar pena. Pensou em contar tudo pra sua amada, mas achou que poria em risco a sua vida também, e já bastava a dele nesse fio de navalha.

No domingo, debaixo de chuva, vagueou pelo parque. E todas as mulheres que cruzavam o seu caminho tinham o rosto dela.

Na segunda-feira ele decidiu fugir. Simplesmente ganhar mundo. Ia conversar com ela antes e daria o fora enquanto é tempo, sumariamente.

Na terça não dormiu. Repensou e achou que como homem deveria ficar e ouvir o pai patrão. Que homem seria ele se fugisse de uma simples conversa? Se fosse pra morrer, morreria por amor. Morreria como um homem e não fugindo como um rato.

Na quarta-feira o rapaz amanheceu sentado na escada, na entrada da mansão. O sol ainda vinha no horizonte quando Donato saiu lívido pela porta principal. Se aproximou dele e o mirou fixamente, segurando os seus dois braços.

– O avião caiu logo depois da decolagem, em Chicago. Morreram os dois ocupantes: dom Fredo e o piloto.

O rapaz desmaiou.

 

 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O Novo Síndico


Bem diferente dizer síndico novo e novo síndico. Na segunda sentença diz-se do indivíduo recém eleito, que foi alçado ao cargo recentemente, revelando-se em uma nova opção. Já no primeiro modelo, trata-se de um síndico cuja idade se refere a alguém imberbe, um jovem aspirante na vida condominial.

Foi essa a conversa que eu presenciei dentro do elevador entre duas senhoras idosas, moradoras de primeira hora daquele edifício, do Centro da cidade. Ao mesmo tempo em que frisavam a diferença entre as duas questões, não deixavam de expor o seu descontentamento com um “moço que nada sabe da vida” vir querer administrar um condomínio, “veja a senhora, o absurdo”.

A outra, que antes apenas concordava, suspirou com intensidade e, olhando-se no espelho, alertou que só nos resta esperar, já que foi a vontade da maioria e, como “sou sempre pelo culto à democracia”, temos de respeitar a vontade dos vizinhos, registrada na assembleia de eleição.

Eu não sabia quem era o síndico novo, tampouco sabia de onde estava vindo aquela inquietação com o tal eleito. Talvez fosse pelo síndico, o cargo em si, talvez fosse pelo “novo”, a idade ou a falta dela, quando se trata de experiência para se ocupar um cargo de administração, seja ele qual for.

Era um prédio antigo, de 12 pavimentos, com corredores amplos nos andares, onde ficavam os elevadores e também as escadas, igualmente amplas e bem iluminadas. Não havia porta corta fogo, pela própria construção da edificação, de tal modo que as escadas ficavam à vista, bem em frente aos elevadores.

Pois bem, é justamente nesse espaço descrito, ou seja, no alto da escada de cada andar, onde ficava uma grande lixeira, um recipiente plástico, devidamente tampado e que fora instalado fazia tempo. Toda tarde vinha um funcionário da limpeza recolher o saco de lixo correspondente, andar por andar.

Uma certa manhã, a surpresa chegou a cavalo. Por ordem do novo síndico, que também era o síndico novo, as tais lixeiras haviam sido recolhidas. No elevador podia-se ler a nova instrução alertando que, daquele dia em diante, os condôminos deveriam levar os seus próprios sacos de lixo até o térreo e depositar no coletor principal do prédio, que era quase um container, de tão grande.

Não sei se devido à minha pouca circulação pelas dependências do edifício ou talvez por minha seletiva desatenção, eu posso jurar que não vi ninguém a reclamar da tal nova medida, aquela recém exarada pelo novo ocupante da governança condominial. Pelo que pude perceber, as pessoas simplesmente passaram a cumprir a regra, ou seja, levar o seu lixo ao local indicado e o bailarico se foi improvisando a contento.

O tempo passou conforme Cazuza um dia cantou. Nesse período as portas das garagens foram lubrificadas, os interfones reparados, algumas luzes substituídas e até o tapete do saguão foi trocado. O síndico novo era só satisfação.

Foi então que, subitamente, sem qualquer notificação e sem aquele famoso aviso no elevador, de repente as lixeiras dos andares voltaram aos seus lugares. Eu ia escrever devidos lugares, mas quem sou eu pra discorrer sobre o que é devido ou não, frente a um síndico novo, formado em Administração pela universidade federal e que, dotado de muitos predicados, vinha fazendo um excelente trabalho à frente daquele tão almejado cargo?

Diante daquele fato, daquele recuo nas determinações sapientes do novo administrador, a minha curiosidade aflorou como nunca antes na história desse país – ah, desculpa, essa frase é de uma outra crônica. Pois eu fiquei com uma enorme pulga pra saber a razão da volta daquelas lixeiras, até então tidas quase como uma plataforma de campanha daquela eleição, me disseram a certa altura. O meu vizinho de porta então, que já tinha sido síndico – nos primórdios, como ele mesmo disse –, ficou em pontas de agulha, querendo desvendar a nova determinação que pegou a todos no contrapé.

A vida leva e traz, a vida faz e desfaz, já dizia o poeta Miguel Wisnik. E foi exatamente esses versos que me vieram à cabeça quando entrei no elevador, indo pro trabalho. As mesmas duas senhoras, novamente lá estavam.

– Eu acho que se você quer mudar alguma coisa, é preciso saber primeiro porque aquela coisa está daquele jeito. Aí sim, depois você avalia se o que você quer mudar faz sentido – disse uma delas.

– Isso. Mudar só por mudar não garante nada.

– E sem ouvir ninguém, olha o absurdo! Chegou aqui num dia e no outro já quer ser o tal?

– Agora voltou com as lixeiras e finalmente entendeu a razão de elas estarem ali.

– Entendeu, não. Aprendeu.

– Verdade. Aprendeu. Até os jovens precisam aprender de vez em quando e parar de achar que sabem de tudo.

Elas deram um sorriso de vitória e eu me despedi com um bom dia protocolar, enquanto escondia o meu riso de canto de boca.

Mas a história ainda estava incompleta para mim. Faltava o toque de mestre, o tópico que teria feito o síndico se curvar à realidade. Uma realidade cruel, como eu vim a saber depois, mas que pode ser explicada na própria existência humana.

A peculiaridade daquele prédio era que ali residiam muitos idosos, muita gente que morava ali era sozinha e já de idade avançada. O benefício de ter uma lixeira no próprio andar facilitava a vida dessas pessoas, pois bastava ir até a frente da escada e deixar o seu lixo, sem precisar andar muito e sem ter a necessidade de usar o elevador para ir até a lixeira principal, no térreo.

Com a retirada delas, isso não só passou a obrigar a todos a cumprir esse novo e longo trajeto, mas principalmente, desajustou o que estava dando certo. É que os idosos, na maioria das vezes, não percebiam quando seus sacos de lixo estavam vazando algum líquido. E esses líquidos são ótimos em produzir mal cheiro, um mal cheiro que agora estava tomando todos os andares do prédio, o saguão e também os elevadores.

Por mais que os abnegados funcionários da limpeza se esforçassem, o cheiro impregnava cada vez mais. E eles passaram a limpar duas vezes por dia, aplicavam desinfetantes, jogavam desengordurantes perfumados de todas as marcas e nada, o cheiro continuava firme e forte. Foi um alívio para eles quando souberam que as lixeiras iam finalmente retornar, para encerrar aquela luta insana.

Tudo enfim parecia ter voltado à normalidade. Foi pura sorte a minha quando, dois dias depois, eu entrei no elevador e não tinha ninguém.  No mesmo instante eu reparei que onde se colocavam os avisos havia um papel e nele estava escrito uma única e curta frase: “A Vida Ensina”. Nossa, eu quase aplaudi. Aquela sutileza! Quase dei um pulo no elevador vazio.

Na mesma hora eu pensei nas velhinhas. Ou nos velhinhos. Em todos eles, enfim. Em todas as pessoas que tinham alguma dificuldade de deslocamento e mobilidade.

Não sei quanto tempo aquele “aviso” ficou ecoando ali, clandestino.

Mas ninguém se atreveu a retirar o papel de dentro do elevador.

 

 


segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A Copa do Mundo da Fernanda Torres

 

No terceiro gol do Brasil, com Jairzinho marcando o que seria o prenúncio da goleada histórica por 4 a 1 frente a Itália, notei que começou a chegar gente lá em casa. Primeiro veio o Sabu, depois o Peri com o Nonoca, mais tarde chegou o Vinagre, o Augustão e o Bibi, este último o único sambista de carteirinha da vizinhança.

Sabu era soldador profissional, Peri era capoeirista e Nonoca professor de Português. Vinagre era o mais velho e tinha um comércio pequeno na avenida. Ali vendia uma miscelânea curiosa de objetos, plásticos, louças e utilidades afins. No meio dessa barafunda eclética de especialidades o Augustão era puro paradoxo. Um preto retinto, alto, fortão, com um bigode típico de policial mal encarado. Policial ele até era. Mal encarado jamais. Principalmente quando a gente passava pelo Largo da Segunda-Feira, onde ele era a autoridade de trânsito da área. Ali ele dava expediente, trajando com orgulho uma farda impecável e soprando frenético o seu apito. Quando reconhecia algum amigo passando por ali, abria um enorme sorriso, super branco, que nos fazia sorrir e acenar de volta.

Pois essa turma entrou sala adentro e foi logo explicando pro meu pai que a ideia era organizar, antes mesmo do final do jogo, os instrumentos da bateria. Tão logo fosse concretizada a peleja lá no México, o bloco de carnaval sairia pelas ruas celebrando o tão almejado Tricampeonato Mundial.

Bem, não deu quinze minutos e Carlos Alberto fez o quarto gol, o mais histórico daquela Copa, recebendo passe de ninguém menos que Pelé. Até o apito final a batucada já estava instalada na porta de casa, convidando todo o bairro pra festejar.

Cada um que chegava trazia uma bandeira, uma camisa da seleção ou um instrumento qualquer de percussão. Em direção à rua principal, o cordão foi ganhando espaço e o trânsito começava a ser desviado. Era gente, muita gente. A essa altura já tinha cornetas, pistons e até arriscaria dizer trombones, embora ninguém soubesse de onde eles tinham saído.

Um pouco mais para trás do bloco, já enorme, minha mãe levava a mim e meu irmão, cada um em uma mão, de onde a gente só saía por poucos segundos, pra voltar novamente ao seu lado. De repente uma movimentação que parecia ser um tumulto, um princípio de briga e logo se abriu um clarão. De pronto minha mãe percebeu que meu pai estava no meio da confusão. Ao chegarmos mais perto eu comecei a entender que alguns homens estavam prendendo o meu pai. Eram policiais à paisana, ao que tudo indica armados, que tentavam imobilizar os braços do meu pai, o deslocando para a calçada, perto do muro de uma casa.

Eu tinha uns nove anos e estava em pânico diante daquela cena. Alguns dos amigos que estavam no bloco também foram até lá e eu os vi gesticulando com os guardas, argumentando contra aquela prisão. Eles não tinham qualquer identificação, nada. Perguntados sobre a razão da detenção ou para onde iriam levá-lo, desconversavam e não davam qualquer satisfação. Nem pra minha mãe que se apresentou como sua esposa.

Atônito e já quase algemado, meu pai estava apavorado e não tinha nada que alguém pudesse fazer, ali no canto da rua, imobilizado de costas para a parede, com todos aqueles policiais em volta. De repente, aparece o Augustão, emergindo do meio da folia. Já chegou mostrando as suas credenciais de policial e disse aos colegas que conhecia o meu pai e passou a pedir esclarecimentos sobre a ocorrência.

De pronto todos nós sentimos uma sensível mudança na abordagem que se desenrolava. Então o Augustão mostrou onde meu pai morava, apontou até a nossa casa, de número 3. Depois seguiu informando que se tratava de um trabalhador, do ramo de ótica e nos apontou como sendo sua família. Em um determinado ponto os ânimos foram se acalmando por completo, até que por fim soltaram o meu pai e asseguraram que tudo não tinha passado de um engano, um mal entendido, pois meu pai não era a pessoa que eles estavam procurando.

Ninguém voltou ao bloco do Tri. Fomos todos lá pra casa, fatigados e ainda bem assustados. Minha mãe preparou um café e entre os agradecimentos ao Augustão, ficamos cada qual com sua consciência, imaginando até onde tudo aquilo poderia ter ido sem a intervenção salvadora do amigo policial.

Quando eu assisti a Ainda Estou Aqui, toda essa história veio rápida à minha lembrança. Nítida e também melancólica. Pois realmente não dá pra imaginar, diante do monstro da ditadura – essa ditadura que muitos jovens alegres e alienados optam por ignorar –, qual teria sido o destino do meu pai, entre tantos pais, como o pai do Marcelo, o Rubens Paiva. Era uma ida sem volta para todos nós. Como tantas outras que aconteceram, com seus horrores. Que extirparam famílias e suas relações para todo o sempre.

Por fim, no espaço entre as minhas lembranças e as celebrações do Prêmio Globo de Ouro, ontem fez 10 anos do passamento do meu pai. Exatamente dia 5 de janeiro. Dia histórico para a Cultura Brasileira, um dia memorável para o cinema e a arte nacionais. O Dia da Fernanda. Um dia em que uma atriz, a melhor filha atriz da melhor mãe atriz brasileira chegou ao topo, ao prêmio máximo da cinematografia mundial. E teve fogos nas cidades, nos grandes centros. Gritos de vitória, de gol, de comemorações de todas as artes. Foi uma noite de festa em todos os teatros, palcos e telas desse país.

E o Brasil todo acordou hoje com o abraço da arte premiada das Fernandas, a filha e a mãe. Cada qual uma Eunice Paiva de seu tempo. Sempre forte e altiva, lutadora e militante. Uma mulher que merecia também uma data só dela.

Em uma das suas entrevistas, hoje pela manhã, Fernandinha disse que tudo parecia com uma Copa do Mundo, um clima de Copa, uma comemoração de Copa. Um clima de união pela arte e pelo cinema. E ela estava certa, mais uma vez.

Que o Dia da Fernanda, o 5 de janeiro, seja o início do reencontro do Brasil consigo mesmo, com a democracia e com sua história.

Salve Eunice Paiva.

Salve Fernanda Montenegro.

Salve Fernanda Torres.

Para todo o sempre!