sábado, 28 de junho de 2025

Seu Ari

 

Era uma rua lisinha e plana, de asfalto recém colocado, os meios-fios branquinhos e alinhados. Tudo perfeito. Nas tardes de sábado passavam poucos carros e até juntava gente pra ver o nosso futebol. As torcidas ficavam no cantinho da calçada, mas muita gente assistia da própria janela mesmo, uma fileira de casas baixinhas como reza a paisagem singela de todo bom subúrbio.

Tinha dias em que podíamos jogar de tênis, mas na maioria das vezes a peleja era descalça mesmo. Tudo dependia da maioria dos meninos. Assim, pra igualar as condições, ou era todo mundo de tênis ou de pé no chão. E ainda, um time com camisa e o outro sem. As balizas eram chinelos, às vezes caixas de madeira, de papelão, ou outra coisa qualquer que servisse de marcação.

No casarão que ficava quase na esquina, um pouco depois da linha do gol, morava o Seu Ari. Era um sujeito magrelo, bigodinho suspeito e fino, cabelos com Gumex esticados pra trás e uma enorme antipatia pelo mundo. Sim, o velho nutria uma pitoresca e espontânea aversão pela humanidade, principalmente os vizinhos e, mais ainda, por vizinhos que jogassem bola na frente da sua casa. O homem era insuportável. Como diz um amigo meu: “um cano de passar bosta, de tão grosso”.

A nossa sorte, ou melhor, a sorte do nosso “estádio de futebol” era que os muros da casa do Seu Ari eram relativamente baixos. Assim, quase sempre alguém pulava o dito obstáculo e recuperava a bola sem que o dono da casa sequer suspeitasse. Era um pé dentro e outro fora da casa, com a bola nas mãos.

Isso acontecia, naturalmente, quando o ícone rabugento não estava na varanda. Nesses casos ele ficava ali só esperando a bola cair e no minuto seguinte cuidava de dar-lhe um fim, tirando das nossas vistas e levando pra dentro de casa, sumariamente. A gente chamava, gritava e o velho nem tchum pra nós. Era mais uma bola que se ia. Muitas vezes aquilo era o fim do jogo. Outras, por algum milagre, um santo qualquer trazia outra bola, igualmente recebida com muita festa.

Mas um dia, em uma tarde especial, toda essa histórica convivência mudou completamente. Estava o nosso vizinho ranzinza de prontidão ao lado do portão de casa, assistindo ao jogo. Assistindo é modo de falar, porque ele estava ali atento, premeditando a hora em que a bola cruzasse o seu muro para dar cabo a alguma nova maldade. Dessa vez ele havia acabado de trabalhar no pequeno jardim e estava ainda com as ferramentas na varanda.

Deu mais um minuto e pronto, lá se foi a bola. E como ele estava ali ninguém pulou o muro, claro. A garotada apenas pediu a bola de volta. O velho ficou em silêncio, jogou o cigarro fora e, lentamente, foi até o meio do jardim, buscou a bola e trouxe pra perto das ferramentas. Ali ele escolheu uma enxada e a posicionou mirando a nossa bola. Na mesma hora todo mundo gritou pra ele não fazer aquilo, prometendo não deixar cair lá de novo, mas não teve jeito. Em câmera lenta todos nós pudemos ver em detalhes quando ele ergueu a enxada, mirou a bola e... acertou a própria canela.

O barulho que fez foi horrível. E mais horrível ainda foi a quantidade de sangue que aquela canela fina, que era só osso, conseguiu expelir. Uma sangueira danada tingiu a varanda e, em poucos minutos, o velho Ari estava deitado no chão gritando de dor.

A gente ficou um minuto sem saber o que fazer, um olhando pro outro e, não sei de onde, surgiu algum vizinho, adulto, que pulou o muro e foi socorrer o velho. Lá de dentro ele começou a pedir coisas e alguém saía em disparada em casa pra buscar. Pediu panos, gazes, depois tesoura e antissépticos, sei lá, tanta coisa, até que decidiu pedir pra alguém trazer um carro pra levar o coitado até um hospital, sob o risco de o rabugento morrer ali mesmo.

Foi uma correria dos diabos a partir daí. Cadê o carro? Como vai abrir o portão da casa? Quem vai junto? Um furdunço generalizado até chegar a cena que eu lembro bem, e que era um monte de gente pulando pra dentro da casa, depois o esforço da turma levantando o ferido pra também passá-lo por cima do mesmo muro, e, finalmente, o trabalho pra botar o homem no carro.

Toda a vizinhança passou aquela tarde de sábado esperando por notícias do Seu Ari. No final estava todo mundo com pena dele, coitado. As notícias não chegavam e a aflição só aumentava. Quem ouvia a história dizia que era loucura se ferir daquele jeito, veja você, furar a bola com uma enxada!

Uma eternidade e um dia depois, eis chega um carro trazendo o vizinho abatido. Atrás dele o motorista que o socorreu e que agora o auxiliava a entrar em casa. A filha do Seu Ari, que morava em outro bairro, também amparava o pai e trazia as receitas com os remédios dados no hospital. Ela já estava ciente de toda a ocorrência e enquanto entrava em casa disse que depois queria falar com a gente.

De repente aquela casa, até então intransponível para todos ali, passou a vivenciar um entra e sai de gente, todo mundo querendo ver como estava o estado de saúde do Seu Ari e se ele precisava de alguma coisa. Uma vizinha que morava na vila ao lado trouxe um pote com sopa. Uma outra chegou com um par de muletas dizendo que o idoso poderia usar o quanto precisasse e que não tivesse pressa pra devolver.

Até que a filha do Seu Ari finalmente veio até o portão. Com os olhos marejados passou a agradecer a todos pelo socorro ao pai dela. Disse que ele é uma pessoa difícil, mas que se não fosse a iniciativa de levá-lo ao hospital talvez ele não sobrevivesse ao ferimento, pois que foi grave e na idade dele poderia ter sido fatal.

Daquele dia em diante, não tinha uma única vez que algum vizinho fosse ao mercado que não parasse na porta do Seu Ari pra perguntar se ele queria alguma coisa. Da padaria, as pessoas traziam pães e outras coisas pra ele tomar café. A gente via que ele tinha muita dificuldade pra se locomover com aquelas muletas e por isso todo mundo queria ajudar.

Nos dias de futebol, assim que começava o jogo a gente percebia que vinha o Seu Ari lá de dentro da casa e, com alguma dificuldade, destrancava o portão grande da garagem. Depois nos avisava que estava só encostado. Quando a bola caía lá dentro a gente entrava, cumprimentava o velhinho na varanda, pegava a bola e agradecia.

Ele também agradecia.

E nos agradeceu até morrer.

 

 


sábado, 24 de maio de 2025

A Caneta

 

A tentação ficava ao lado do colégio. Na mesma calçada. Era sair pelo portão e estar praticamente dentro dela, sujeito a ela. A tentação era uma papelaria, especializada em artigos japoneses. Tinha o nome de Novo Oriente e na fachada havia o desenho de um sol nascente. O proprietário, claro, era um japonês que pouco falava português, assim como a sua família, todos funcionários da loja.

A vitrine, ainda lembro bem, tinha as calculadoras mais lindas, os compassos, estojos de lápis de veludo, cadernos, cada coisa mais tentadora do que a outra. E tudo bem carinho, pois eram itens importados e, no início da década de 1970, a novidade era o máximo, como sempre nos lembra o eterno mestre Gilberto Gil.

Os relógios digitais eram um capítulo à parte. Acendiam o mostrador apenas com um toque dos dedos e alguns até tinham calculadora na tela, coisa que a gente não estava acostumado a ver na época. Mas os relógios só perdiam para as canetas. Ah, as canetas faziam suspirar os mais abastados alunos daquele colégio, que já era, em sua maioria, de gente abastada.

Um dia um aluno da minha sala nos mostrou a caneta que tinha comprado lá na Novo Oriente. Tinha a ponta de feltro, algo assim esponjoso, que tecnicamente chamava de ponta porosa. Fazia um traço levemente fino e, conforme a pressão da mão, engrossava o risco tornando-o um caminho brilhante de tinta firme, com a uniformidade dos japoneses. Uma maravilha.

Na mesma hora a tal caneta começou a circular pela sala de aula, passando de mão em mão, e deixando cada um com o seu assombro particular. Todos perguntavam se era da loja nipônica e a seguir tentavam um traço aqui e ali, no caderno, na capa do livro e até no braço.

No braço, o primeiro que testou logo alardeou dizendo que ficou igualzinho a uma tatuagem. Pela porosidade da caneta, o volume no braço, sei lá, o fato é que essa coisa de tatuagem também era bem incomum na época. Na verdade já era uma fase de transição, pois que até então era uma prática restrita aos estivadores, marinheiros e a algumas mulheres de reputação duvidosa.

Pois no mesmo instante em que o sujeito mostrou a sua “tatuagem” todo mundo queria fazer uma também. A mobilização já estava longe de ser apenas um rabisco, pois um passou a desenhar no braço do outro, de modo a garantir que os objetos gráficos ficassem o mais profissionais possível. Aula, mesmo, não teve mais, se é que a esta altura seja necessário dizer.

Eu me dei conta de que aquela tinta, embora bonita no braço, vinda de uma caneta idem, tinha como peculiaridade a sua singela fixação nas superfícies diversas em que fora aplicada. Entrando na escola no dia seguinte eu percebi que meu braço ainda trazia a estrelinha que alguém – e não lembro quem – desenhou em mim. Na mesma hora me veio a vergonha de que parecia, ou melhor, podia parecer, que eu não tinha tomado banho desde o dia anterior. Ao menos um banho digno, que apagasse o desenho da aula de ontem.

Eu fiz o que pude pra esconder a parte do braço onde havia tinta e fui. Mas bastou que alguém voltasse ao assunto da caneta e da tatuagem, logo depois do recreio, para que eu me sobressaltasse. Claro que o fato ia ser motivo pra alguma zoada e eu não sabia como devia reagir.

A sorte foi que, lá na turma da frente, logo surgiu um alvoroço sobre o mesmo tema e, claro, a vítima foi uma menina da primeira fila, querida dos professores, que era loirinha e usava uns óculos de lentes bem grossas. Por ser bem branquinha, a marca da caneta era evidente. Saltava dos seus braços e não tinha como esconder. E foi ela que concentrou todas as troças, as brincadeiras, as befas e também as mangofas. A menina estava cercada.

Eu fiquei pensando, cá comigo, que duvido que todos os alunos conseguiram tirar a marca daquela caneta. Muita gente devia estar como eu, tentando esconder os desenhos, pois era muito difícil tirar do corpo aquela tinta japonesa do capeta! Pensei isso, mas não disse nada. Fiquei quieto.

E como acontece em todas as histórias que viram romance, uma virada abrupta surgiu. O Jorge Luís, um garoto que sentava ali pelo meio da turma, sorrateiramente veio até a mesa do dono da caneta, pediu emprestada e, sem que ninguém visse, fez um risco no próprio braço. Depois, passou os dedos por cima, molhou na própria boca ao repetir o gesto e foi pra perto da menina, a Marcia Carvalho. Tal como um príncipe, um salvador em seu cavalo branco, o menino disse que ele também tinha tido dificuldade pra tirar a marca, mas que aquilo não significava que ele não tinha tomado banho. Enfim, a teimosia da tinta era fruto da qualidade da própria caneta!

Foi uma surpresa geral. Ao mesmo tempo em que os poucos meninos, que sabiam que ele próprio se riscou, passaram a apoiá-lo sobre a questão do banho, as meninas, por sua vez, que viram na sua atitude um gesto singelo de cavalheirismo, tentando salvar a pobre da Marcia, pediram para que todos parassem de pegar no pé – ou no braço – da menina da primeira fila.

Em poucos minutos outros alunos e alunas se encorajaram e passaram a mostrar as próprias marcas do dia anterior e todos juravam, rindo, que tinham tomado banho, normal, alastrando as piadas que iam surgindo e desfazendo o clima de bullying que já se avizinhava e que naquele tempo ainda não tinha esse nome.

O Jorge Luís ganhou notoriedade por sua atitude nobre e desde então passou a ter o respeito de todos nós, principalmente das meninas, que souberam mais tarde que, na verdade, entre ele e a Marcia, havia ali um caso de amor não correspondido, o que cortou o coração das alunas mais sensíveis.

Alguns meses depois, teve uma votação pra escolher a princesa da sala. Não me lembro se era por ocasião da Festa Junina, Festa do Milho ou alguma coisa parecida. Mas lembro que, em um dos votos surgidos das urnas e lido em voz alta pela comissão de apuração, estava escrito: “Marcia Carvalho, uma princesa estonteante”.

A turma aplaudiu aquele voto por um longo tempo.

Eu aplaudi junto.

Foi o único voto dela.

Ninguém teve dúvida da sua autoria.

 



quarta-feira, 7 de maio de 2025

A Padaria do Além


Não lembro o dia exato em que me caiu nas mãos o poema Mude, de Edson Marques. Na nota de rodapé constava que o texto era atribuído erroneamente a Clarice Lispector e essa informação me deu uma saborosa dúvida. Por um lado o autor ficava diminuído, sim, furtado mesmo ao não ter o próprio nome atado ao seu poema. Mas, quem sabe, algum orgulho ele sentiu por ser o verso considerado tão bom que poderia ter vindo da maravilhosa lavra da escritora famosa. Quem sabe?

Essa crônica começa justamente por essa premissa de mudar, mudar o lugar onde eu normalmente compro o pão doce redondo, com frutas cristalizadas salpicadas e muito creme de sonho por cima. Só de descrever a gente já sente água na boca.

Quando eu perguntei pelo pão doce, hoje de manhã, a moça disse “Ah, hoje o padeiro não fez”. Como assim, não fez? Minha vontade era chamar a senhora do caixa, o dono da padaria, a guarda real suíça do Vaticano, o prefeito mesmo que fosse, e denunciar aquele acinte infame de ter o padeiro o poder indigno de decidir o que vai ser levado ao forno e o que não, sendo que na visão dele o mundo todo que se dane em suas aspirações matutinas, mélicas e salve-salve.

Como a atendente, cúmplice do algoz padeiro bambo, definitivamente não estava nem aí para o meu desalento e inconformismo, a minha primeira preocupação não foi a ausência da farda suíça ao redor da Rua Conselheiro Mafra, mas sim procurar outra padaria, quiçá várias, até que toda a inspiração vinda do poema afinal não fosse suficiente e a tal busca obstinada me tirasse o fôlego, me pondo no rumo de casa finalmente.

E eu andei um bocado. De cada beco que eu saía – ou entrava – estava lá a Madalena do Gil a me cumprimentar. Em outros casos era o Rei do Baião a me curvar o cenho, cantando que sua vida é andar por esse país... Mas eu ali, firme na busca.

Cucas secas de sabores mil, biscoitos de todas as manteigas e formas, e os sonhos... ah, os sonhos aviltados... de chocolate, de doce de leite, ou ainda piores, com seus deprimentes e ralos cremes de baunilha, ou de sei lá o quê, pálidos, que fariam retorcer as madeiras nobres dos túmulos do Mosteiro dos Jerônimos de tanto desleixo e malfeito com o doce clerical e consagrado. Enfim, em nome das planilhas de custos já não são doces os doces concebidos nas docerias, tampouco nas padarias sem tradição, mundo afora.

Eu queria só um pão doce. Com creme de sonho legítimo e alguma fruta cristalizada por cima, mas intuí que talvez não fosse algo tão simples como eu imaginava. Não nesse bairro, ou nessa cidade. Eu já tinha andado todo o Centro de cabo a rabo, cruzado rios, subido montanhas, ladeiras de vai-e-vem, túneis improváveis, lagos, lagoas e mares, pontes clássicas e suspensas, outras modernas e quase brutalistas.

Também tinha entrado, vá lá, em lojas de todos os tipos, desde que servissem algo pra comer. Pastelarias, hamburguerias, restaurantes típicos variados, de comidas árabes, japonesas, italianas, alemãs, quase todos por quilo, com opção de lanches estranhos nas suas nacionalidades.

Dizem que no deserto, a depender da sede de cada um, a pessoa tem alguma dificuldade de visualizar o tão almejado oásis. O cérebro já não confirma e nem confia na qualidade de olhos ressentidos de água e alimento mínimo. Então, no final de uma rua pequena, que quase nem chega qualquer circulação de monta, eu li a placa padaria. Tinha um desenho, umas letras desalinhadas que eu nem dei muita atenção e entrei.

Era uma padaria modesta. Modesta e híbrida, pois que também servia comida no modo self-service. Ali não tinha mesa, o balcão rodeava todo o espaço e as pessoas almoçavam lado a lado. Depois pagavam na saída. A porta se fechou atrás de mim e eu dei uma olhada geral no ambiente. Gostei do que vi, tudo bem organizado e limpo. Então, tal como um oásis, lá no fundo, com uma iluminação quase cênica, uma linda vitrine colorida de doces e pães emergia daquela paisagem de rechôs, pratos e talheres.

Eu tirei os óculos escuros, esfreguei os olhos procurando algum camelo desavisado por perto e, em poucos segundos, venci o espaço de almoço, chegando até os doces. Uma maravilha. Aquilo era uma miragem. O senhor do outro lado do balcão, ao me ver, ia apontando as iguarias e dizendo o que eram, quais os seus ingredientes principais e em seguida me deu um recipiente plástico, pra que eu escolhesse o que quisesse.

A minha busca tinha terminado. Não só achei o pão doce que eu procurava, com muito creme e as frutas, como também tive a grata surpresa de me deparar com um sonho digno, com o creme idem, e, pra completar, chegando aos píncaros do improvável, eles tinham uma torta enorme de abacaxi, com aquela calda de caramelo por cima. Eu só não ajoelhei ali mesmo porque não temos ainda um novo papa escolhido pelo conclave e, com isso, o objeto da minha devoção eclesiástica ia ficar prejudicado. Fora isso, era o céu. O céu dos doces.

Entrei na fila do caixa e passei a observar o ambiente, decifrando como era possível juntar o espaço do almoço com as vitrines daquela padaria perfeita e muito bem montada, cheia de doces e guloseimas da melhor qualidade.

Voltei pra casa repassando o périplo da minha aventura naquela manhã e tentando lembrar o caminho até a padaria, pois de tanto que entrei e saí de beco a minha memória se preocupava em registrar o trajeto certo para um retorno em breve.

No meu celular, já em casa, recebi uma mensagem do banco com a despesa do cartão de crédito, para conferência. Estava escrito: pagamento realizado, Padaria do Alem, depois vinha o valor, a data e o horário da compra.

Padaria do Além? Mas... claro, só podia ser. Não tinha nome mais adequado para aquela padaria. Era o céu aquilo, gente. Eu bem que tinha dito. Falei isso baixinho e sorri de modo prosaico, olhando a tela do celular.

Desconfiado, fui pegar a nota esquecida ainda dentro do embrulho. No verso estava escrito: Padaria do Alemão.

Foi então que eu entendi que na mensagem do banco, por questão de espaço, não cabia o nome todo da padaria. Eram poucos caracteres e por isso o nome saiu cortado, sem o “ão”.

Melhor pra mim.

Muito melhor o sentimento de ser cliente da Padaria do Além.

 

 

 

https://www.tudoepoema.com.br/edson-marques-mude/

 

 


sexta-feira, 11 de abril de 2025

O Vizinho

 

Pouca gente tem um vizinho tão filadapulta quanto o meu. Essa foi a primeira frase que eu ouvi e que me fez virar a cadeira pra ver quem estava falando. Minha consulta ainda ia demorar e a cada vez que o dentista ia na recepção buscar um novo paciente, me avisava que logo me atenderia.

Demorou uma eternidade. Mas poderia ser pior se eu não tivesse presenciado aquele diálogo, cuja história, cheia de detalhes, já prenunciava a possibilidade de uma boa crônica. A certa altura eu já estava torcendo pra que nem o meu dentista, nem o dos outros dois chamasse um de nós e tudo se acabaria ali mesmo, sem fim, como uma série de tevê cuja temporada foi cancelada pelo estúdio.

O fato de eu me virar pra ver quem estava falando foi o bastante para que o narrador me incluísse na conversa, ou na audição, já que era só ele que falava. Eu, por minha vez, estava ávido por saber os pormenores daquele vizinho fiiidumaégua, que foi como ele recomeçou a história, já com a minha assistência.

– O sujeito é um ogro. Não tem a menor educação com nada. Grita dentro de casa tão alto que todo mundo escuta. Xinga a mulher, a filha, o entregador ele ameaça que não vai pagar. Uma alma de cavalo, com todo o meu respeito aos cavalos. Uma vez ele fez uma obra no telhado e o vizinho de trás foi reclamar que estava caindo restos de cimento na varanda dele. Pois o quadrúpede saiu de casa e foi pra porta do sujeito dizendo que ia comer o cara na porrada, que com ele era assim, que ele resolvia tudo no braço. Veio polícia, veio o zelador do condomínio e no final, eu descobri que o filho do cão era o síndico. Sim, ele mesmo, aquele pedaço de cano de passar bosta, de tão grosso, era também o síndico do condomínio. Agora eu pergunto: pode ter gente que vota num coiso desse pra síndico? Só mesmo gente bosta pra votar em outro bosta. (seria isso um aforismo?)

– Nossa, que homem rude – disse o amigo, olhando o relógio e medindo o atraso da sua consulta.

Então o narrador eufórico disse apenas um “Calma, aguarde que vem coisa pior por aí”. Nessa altura eu já tinha puxado a cadeira de lado e fiquei de frente pro contador, evitando que o pescoço começasse a doer num torcicolo que já viria, certamente.

– Pois então, o único que batia de frente com esse vizinho escroto era um ex-bombeiro militar que morava na rua de trás e que sempre reclamava do som alto aos domingos. É que ele fazia churrasco, festa ou sei lá o quê e o som era nas alturas o dia todo. Uma música ruim da porra, sim porque música alta é sempre ruim da porra, e com isso eles ficavam brigando o tempo todo. Era um inferno pra toda a vizinhança, mas quem sempre reclamava e chamava a polícia e ameaçava de volta era esse ex-bombeiro, quer dizer, ao menos ele dizia que tinha sido bombeiro.

– Você conhece esse vizinho?

– Sim, claro. Eu moro no condomínio ao lado, muro com muro. Escuto tudo de casa, as brigas, os xingamentos, a música alta e tudo o mais. Pra você ter uma ideia eu consigo saber certinho quando ele está em casa e quando não está. Aliás é uma paz quando ele está na rua. E o outro vizinho é até gente boa, a gente costuma se encontrar na padaria e ele sempre parece ser um cara bacana.

– Briga entre vizinhos é uma coisa bem comum. Mas, depois de um tempo fica tudo certo.

– Mas, qual nada. Agora é que vem o melhor da história. Escuta.

Nessa hora eu quase esfreguei as mãos de tanta ansiedade pelo que viria. E até me inclinei para ouvir melhor.

– Então. Passou o dia de sábado. Maior silêncio na casa do demônio. Passou o domingo e nada de barulho. Será que estavam viajando? À tarde eu pensei que tinha de saber o que estava acontecendo e fui direto na padaria. Avistei o vizinho bombeiro chegando de bicicleta, já na porta do condomínio dele. Ele me viu e disse “ô rapaz, queria mesmo falar com você”. E eu: “Eu também queria te perguntar uma coisa sobre o seu vizinho simpático. Tá o maior silêncio lá na casa dele e eu achei...” Só que o sujeito me interrompeu na moral: “Pois então, era isso que eu queria te contar, rapaz. O feladapulta morreu! Teve um infarte, estrebuchou no gramado de casa e ali mesmo ficou. Foi na sexta-feira de manhã. Quando o socorro do Samu chegou foi só cobrir o corpo e mandar pro saco. O infarte levou pro inferno aquele capeta, cumpadi! Tu acredita?

– Minha nossa – suspirou o paciente ao meu lado.

– Ele queria gritar de felicidade e eu me fazendo de contido, claro, é uma morte e tal, temos de ter respeito. Mas no minuto seguinte a gente já estava rindo e dando graças a Deus, ou ao capeta, pelo fim rápido daquele pedaço de asno repugnante e quizilento.

– Uau, que história incrível. O que é o destino né?

– Pois você não sabe de nada, meu amigo. Tem mais. Dois dias, eu disse dois dias depois, esse outro vizinho também morreu. Sim, o ex-bombeiro. Caiu de bicicleta, do nada, na rua do condomínio. Bateu a cabeça no meio-fio e empacotou num único suspiro, breve como voa o passarinho, que uma hora está no galho e no segundo seguinte já não está.

– É... é a vida... É o destino... – balbuciou o homem, algo atordoado.

– Pois sim... é a vida... o destino... – concordou o narrador, algo triunfante.

– Vamos lá, Anderson? Tudo bem? É a sua vez.

Eu me levantei, meio confuso, e fui cumprir o meu destino, rezando pra não morrer naquela tarde, nas mãos competentes do doutor Luís.

 





segunda-feira, 31 de março de 2025

Doce de Leite

 

A novidade na padaria aqui perto de casa era que os pastéis de banana, a partir daquela semana, iam passar a ter a opção com doce de leite. Estava lá o aviso numa plaquinha bem visível, perto da balança.

Antes disso, eu jamais tive de me preocupar na hora de pedir os tais pastéis pois que eram só de banana e era só dizer a quantidade e botar na cestinha. E punto e basta, como dizem os italianos.

Mas na vida as coisas simples não são tão simples assim, como sabemos. Principalmente quando se trata de gente experiente – repare a sutileza –, tratando com gente que está começando a vida e não sabe nada de nada; gente que não sabe minimamente que a falta de uma mera indicação sobre doces e recheios pode pôr tudo a perder, aí a questão fica, digamos, um pouco delicada – com a mesma sutileza acima.

O fato é que, de frente para as duas bandejas de bananinhas – era esse o nome do nosso amigo pastel de banana – qualquer cliente não tinha a indicação de qual era a pura bananinha, a tradicional, a mais vendida, e qual a outra, a que trazia a inovação do doce de leite. Eram duas bandejas idênticas, com bananinhas idênticas, bem fritinhas, açucaradas, acaneladas, ali esperando que os seres mortais adivinhassem qual delas tinha em seu interior o famigerado doce de leite.

A pausa necessária aqui vai desnortear o prezado leitor ou a prezada leitora e, portanto, já me adianto em pedir que não me levem a mal por este pequeno desvio de caráter: é que eu não gosto de doce de leite. Tampouco de chocolate. Mas, ouso dizer, a vida tem sido normal pra mim dentro dessa anormalidade, já que aos amigos eu rogo alguns minutos e logo angario o perdão deles sem qualquer ruptura, ou esbregue, banzé, recacau ou bacafuzada. No final fica tudo bem, creiam.

Pois que, voltando ao narratório, à cotidiana atividade de ir comprar bananinha, desde o momento da famigerada inovação do capeta, pra mim somar-se-ia agora a necessidade de dizer e redizer que a tal que eu queria é a tal que não tem doce de leite. Ou seja, sem doce de leite. Ou melhor, a normal, que não tem o doce dentro, redundantemente. E, mais, ao perguntar ao atendente, acrescia-se o gesto de apontar a bandeja certa, perguntar de novo, requerer uma prudente confirmação com alguém da produção, diga-se da fritura, e ainda por cima conferir o sinal afirmativo com a moça da balança. Era esforço pra mais de metro.

Alguns episódios nessa padaria passaram a ser pitorescos. Uma vez a moça estava quase fechando o pacote quando chegou uma atendente mais antiga, que já me conhecia, e disse que estava tudo errado, tirou o saquinho da moça e trocou as bananinhas pelas certas, do jeito que eu sempre pedia. E quando a menina pensou em dizer que “era tudo a mesma coisa”, a atendente quase pulou no pescoço dela, asseverando o desastre que seria me vender as bananinhas com doce de leite, já que eu sempre pedia a comum, sem o doce, e sempre sublinhava que não gostava do ingrediente recém-chegado.

A menina ficou desajeitada com a bronca e disse um monocórdio “Tá bom, entendi. Vou prestar atenção da próxima vez”, e saiu de fininho por trás do balcão.

Mas na vida as coisas simples não são tão simples assim, como eu já escrevi ali atrás. Bem, o fato é que, para a confirmação das regras, quando se alude à bendita exceção, é nela que as questões ficam sujeitas a um rumo inesperado.

Pois foi num belo dia que eu fui comprar bananinhas para levar pra minha cunhada. Minha cunhada adora doce de leite. Na fila o rapaz da vez me viu e perguntou: quantas? Não dava pra eu responder de longe, simplesmente, pois sabia que ele sabia que eu queria, sempre, eu disse sempre, as sem doce de leite. Então eu cheguei mais perto e expliquei:

– Olha meu amigo, eu queria com doce de leite.

– Mas, como assim? O senhor não gosta de doce de leite.

– Eu sei, mas, é que essas eu vou levar pra outra pessoa, a minha cunhada, entende?

– Então hoje o senhor vai querer com doce de leite?

– Isso. Isso mesmo. Bananinha com doce de leite.

Enquanto ele fechava a portinhola e abria a outra, ao lado, onde estava a bandeja correta para o meu pedido, uma outra atendente chegou apressada.

– Ô Cassio, essas são com doce de leite. Ele leva sempre sem doce. As dele estão ali na outra porta.

– Não, ele falou que dessa vez ele quer com doce de leite. Eu sei o que eu estou fazendo.

– Mas...

– Não tem mas... Deixa comigo.

A menina me olhou e eu, naturalmente sem jeito, expliquei bem rápido o que já tinha dito ao outro rapaz. Ela, esperadamente, fez cara de “que gente doida essa que um dia gosta de doce de leite e no outro não”, mas eu fingi que nem tinha lido o pensamento dela e fiquei esperando o meu pote plástico, com a bananinha, ser fechado.

Do corredor que dá acesso à cozinha o piloto do fogão do mercado, que também já me conhecia de tantas vezes fritar bananinhas novas quando as da bandeja estavam antigas, surgiu com uma forma de pizza nas mãos. Me cumprimentou com os olhos e disse ao outro rapaz:

– Cássio, vem aqui dentro por favor. Eu preciso falar com você, urgente.

– Tô só acabando aqui e já vou lá.

– Não, Cássio, venha aqui. Agora.

– Vou entregar essas bananinhas e...

– Não entregue não. Essas aí são com doce de leite. Mas que raio, eu não chamei você ali dentro?

– Olha, chefe, eu sei o que o senhor ia falar. Mas foi o cliente que pediu essas com doce de leite. Ele disse que não são pra ele e que a pessoa pra quem ele vai levar, essa gosta de doce de leite.

– É isso mesmo? – me inquiriu o chef com uns olhos arregalados por cima da vitrine.

– Sim, meu amigo. Dessa vez eu vou levar com doce de leite. Tá tudo certo, obrigado pela atenção.

O atendente riu meio de lado e, vitorioso, me entregou o pote finalmente.

Na chegada ao local de pesagem, a moça inspirou pra falar alguma coisa mas logo foi cortada pela minha rápida aclaração de que eu já sabia que eram bananinhas com doce de leite e tudo o mais que a gente já sabe.

Ela então disse o que ninguém ali tinha dito antes:

– É que os pasteizinhos, senhor, têm um sinal que indica qual é o recheio. Cada um tem uma marquinha. Esse aqui tem a borda cortada, então é de banana com doce de leite. Os que não têm esse corte são só de banana. Eu já ia perguntar se eram mesmo essas que o senhor ia levar, pois vi o corte ali na borda.

Eu agradeci a explicação e fiquei pensando que doce de leite é ruim.

E punto. E basta!

 

 


quinta-feira, 20 de março de 2025

O Professor de Filosofia


Eu acordei naquela tarde e aos poucos fui tentando entender o que se passava. Eu estava numa cama de hospital, num quarto todo monitorado, muitas telas e fios ligados a mim, com dispositivos apitando e se movendo ao meu redor e uns gráficos que eram atualizados em tempo real.

Por alguma razão, talvez falta de forças mesmo, eu não me sobressaltei com o meu estado. Apenas fiquei curioso pra entender o que realmente tinha acontecido, já que não me lembrava sequer de como tinha ido parar naquele lugar.

Olhando pela janela eu percebia algo estranho que eu não sabia bem o que era. Um céu meio cinza, escuro, as nuvens com uma formação incomum, as árvores de uma tonalidade diferente de verde, enfim, tudo era novo naquele meu olhar de dentro do quarto.

Entrou uma enfermeira com vários objetos nas mãos. Ao me ver acordado, de pronto saiu novamente e retornou com um senhor de óculos redondo, cabelos grisalhos lisos e um olhar que eu teimava em tentar reconhecer. Disse boa tarde e sentou na cadeira ao meu lado, enquanto aguardava o fim do ritual desempenhado pela enfermeira, passo a passo, anotando coisas das telas, medindo líquidos pendurados, tomando a minha temperatura e pressão e, por fim, levantando o encosto da minha cama.

– Boa tarde, Anderson – disse o homem da cadeira.

– Boa tarde... eu conheço o senhor... deixa ver... claro que conheço!

– Talvez sim. Não se esforce muito. Meu nome é Severiano Alfredo...

– Laguna. Severiano Laguna, meu professor de Filosofia da faculdade de jornalismo.

– Isso mesmo. Olha, poucos alunos me reconhecem assim, dessa maneira e com tamanha rapidez. Talvez tenha sido por isso que eu fui escolhido para te recepcionar.

– Recepcionar? A mim?

– Sim. O projeto escolhe pessoas por quem os pacientes têm elevada consideração intelectual. No caso eu nem sabia que você gostava tanto de filosofia, mas sempre supus a sua admiração pelos temas das minhas aulas. Assim, quando fui convocado, já sabia quem você era.

Então o professor me fez um relato de toda a sua vida, a sua infância no Chile, a vinda pro Brasil, a atuação acadêmica e as suas atuais tarefas depois de desencarnar, fato que já fazia uns bons dez anos.

O que estava confuso, agora tinha ficado caótico de vez. Como assim, desencarnar? Mas ele não parava com a sua narração, não havia brecha pra eu o interromper e, de algum modo, eu fui me acostumando com aquele, digamos pequeno detalhe.

– Então, minha primeira questão aqui é explicar o que te aconteceu. Posso?

– Claro, sim – disse, apressado.

– Pois bem. Nesses novos tempos as pessoas não podem, melhor, não devem ficar expostas à atmosfera por mais de duas horas. A temperatura atual do planeta está em torno de 75, chegando ali a picos de 80 graus Celsius em algumas regiões. O corpo humano não suporta essa configuração, como sabemos, e por isso há uma expressa proibição das autoridades sobre a circulação em certos horários, principalmente.

– Eu não me lembro de nada, professor!

– Vou chegar lá. Você foi encontrado desnorteado em uma rua da cidade e tão logo as equipes chegaram você desmaiou, antes mesmo de ser socorrido. A mais comum das sequelas nesse tipo de ocorrência é a perda da memória. Sua memória vai oscilar daqui pra frente, alternando presente e passado. Mas o resgate do que foi perdido, esse não será possível. De vez em quando você vai ter de pinçar alguma coisa lá do fundo, pra que não seja esquecida em definitivo. E sempre que puder contar pra outra pessoa, verbalizar essa memória, aproveite isso como um exercício para a manutenção da sua memória.

– Foi por isso que o professor contou toda a sua vida pra mim, ainda agora?

– Exatamente.

– É como o Fahrenheit 451, do Truffaut. Diante da destruição da cultura, as pessoas decoravam os livros para serem publicados no futuro.

– Exatamente, de novo.

– E quanto tempo faz que eu fui resgatado? Parece que estou aqui há dois dias.

– Faz pouco mais de 4 anos. O tratamento é muito demorado em certos casos. Primeiro se recuperam os órgãos danificados, depois os sentidos, as articulações, a mobilidade e por último a pele. Esta sua foi totalmente trocada, segundo me disseram. Mas o melhor disso tudo é que o paciente só recobra a consciência quando o corpo sente que as funções mínimas estão de novo em ordem. Aí, o espírito tem autorização para retornar ao corpo.

– Não sei se entendi bem. O que seria exatamente retornar ao corpo? Olha, professor, nesse momento eu nem sei o que dizer. Ou mesmo o que perguntar.

– Todo paciente, no mesmo decurso que o seu, normalmente pergunta em que ano nós estamos, entre outras coisas assim, mais práticas. Você não perguntou isso, mas eu vou te dizer mesmo assim. Vejamos, o ano é 2072. A temperatura da Terra é de 76 graus. É uma temperatura global, porque não há mais áreas sem incidência de calor extremo, ou seja, tudo foi afetado de alguma maneira. Por fim, nem os rios, nem os ventos, nem os oceanos parecem ter forças para diminuir todo esse quadro tenebroso.

– E como a gente fez isso? Como viemos parar aqui? Como deixamos isso acontecer, até chegar nesse nível?

– Eu posso dizer, com tristeza, que sou um dos culpados.

– Mas, como, o professor lecionava Filosofia! Não era químico, nem engenheiro, tampouco biólogo ou físico!

Se eu fosse capaz de incutir na consciência do homem a verdadeira filosofia, seus princípios e seus ensinamentos... talvez fosse diferente. Veja, na acepção do filósofo grego Pitágoras, que é mais conhecido no ramo da matemática, a doutrina filosófica está ligada ao amor pela sabedoria, algo que é experimentado apenas pelo ser humano consciente de sua própria ignorância. A Filosofia preconiza a busca das verdades relativas à natureza de Deus, da alma e do universo, divergindo da fé por utilizar procedimentos argumentativos, lógicos e dedutivos. Esse recorte nos dá a clara dimensão do nosso fracasso, um triste e inconteste fracasso. A filosofia não foi capaz de mudar a humanidade, aperfeiçoar o ser humano.


Primeiramente, eu queria encontrar alguma maneira de agradecer ao meu inesquecível professor Severiano Laguna. Não só por ter estado neste meu sonho, conversando comigo, mas trazendo de novo a sua presença, o seu jeito inconfundível de falar, de se expressar, as palavras que gosta de usar, o pensamento lúcido e lúdico ao mesmo tempo. Tudo isso foi um enorme prazer e também é o motivo desse meu agradecimento.

Naquela manhã eu acordei um tanto assustado. Fiquei parado, deitado, olhando o teto do quarto, ouvindo as suas ponderações – como Saramago gostava de pontuar –, pensando no ano de 2072, no aquecimento do planeta, na notícia que li acerca dos estudos sobre a onda de calor extremo, que fará com que algumas regiões fiquem inabitáveis em poucos anos.  E, finalmente, descobri que tinha faltado luz.

O ventilador estava parado há algumas horas e eu estava morrendo de calor.

 

 


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

A Senha


Djair era o chefe e Alcides o comparsa. Estavam os dois na rua caçando oportunidades pra roubar alguma coisa, de alguém ou de alguma loja, quem sabe um motorista desatento com o celular ou um relógio pra fora da janela, enfim, algo que lhes rendesse algum trocado ao fim do dia exaustivo de trabalho. Sim, para a dupla isso era um dia de trabalho.

As maiores desvantagens desses dois eram, primeiro que não tinham uma arma. Sim, porque com uma arma na mão pode-se exigir, com muito mais facilidade, que alguém lhe ceda a bolsa em troca da vida, evidentemente. A segunda era a falta, ampla e completa, de alguma inteligência. Como dizia o meu pai, qualquer um dos dois que tropeçasse, na mesma hora lhe cresceriam rabo e enorme orelha, tamanha a propensão para o animal que ilustra o imaginário da tal ausência de intelecto.

Andavam a perambular os dois pelo Centro da cidade, até que entraram num banco. Não dava pra declinar da temperatura convidativa daquele ar-condicionado. Eu morreria aqui mesmo, pensou o Alcides, ajeitando o topete engomado que lhe caía na testa. Naquele clima de montanha, analisando o ambiente, quase que escolhendo a vítima, eles pegaram senha e sentaram junto dos idosos em uma das cadeiras que também são alinhadas como uma fila, justamente para falar com o gerente.

O seu Inocêncio, quando chegou a sua vez, deixou cair um envelope que ficou escondido no canto da cadeira, ao lado do braço. Mais rápido do que pensar num golpe de estado, Djair surrupiou o envelope e o mocozeou devidamente, como fazem aliás os experientes meliantes.

Pra disfarçar, foram até o bebedouro, sorveram uma água geladinha, cumprimentaram o segurança e saíram calmamente do banco. Um guarda disse ao outro que o bandido se reconhece pela preocupação com os guardas. “Estão sempre nos olhando, os nossos movimentos”. O outro respondeu que tinha percebido um deles nessa atitude suspeita. “Aquele que tinha cara de fuinha”. Ao que o outro riu e finalizou dizendo que ficou na mesma, pois “ambos tinham uma baita cara de fuinha”. E a risada teve de ser contida, afinal estavam em serviço.

Naquela mesma manhã, de posse do envelope do seu Inocêncio, a dupla engendrou o golpe. Não o de estado. O do seu Inocêncio, cujo envelope “perdido” no banco continha não só o cartão de crédito, mas também os dados da sua conta, o nome do gerente e o seu telefone. Mas, seu Inocêncio...?

– Alô, boa tarde. É o senhor Inocêncio?

– Boa tarde. Sim, sou eu.

– Seu Inocêncio, o senhor perdeu o seu cartão do banco hoje pela manhã, não é mesmo? Aqui, quem está falando é o seu gerente. Nós achamos o seu cartão dentro do terminal de saque eletrônico. Estava dentro do próprio caixa.

– Ah, que bom que vocês o encontraram. Que alívio. Eu posso ir até aí buscar, mais tarde?

– Olha, seu Inocêncio, isso não vai ser possível. É que dado o sinistro, a perda do cartão, nós vamos ter de cancelar este e lhe fornecer um outro. Mas é inteiramente gratuito, entendeu?

– Ah, sim. Outras vezes que eu perdi o cartão e depois achei, aqui em casa mesmo, ele teve de ser cancelado também.

– Isso mesmo. É o procedimento. Mas seu Inocêncio, pra cancelar esse cartão e fazer a solicitação do novo eu preciso confirmar uns dados seus, ok?

– Ok. Perfeitamente. Quais dados?

– Bem, o número da sua conta, a agência e número do cartão.

– Espere um pouco que eu tenho tudo anotado aqui na minha agenda.

– Pois não, seu Inocêncio. Não tenha pressa.

Depois de passar os dados que os golpistas pediram, chegou a encruzilhada final, ou seja, a hora de pedir a senha. Cabe aqui explicar que os dois bilontras, os girigotes, os verdadeiros trafulhas estavam já em outro caixa eletrônico, que ficava na saída da galeria de lojas, um local ermo àquelas horas, prontos pra efetivar o saque com o cartão do coitado do seu Inocêncio. Faltava só a senha, quando aqui retomamos o diálogo infame:

– Obrigado pela confirmação dos seus dados, seu Inocêncio. Agora, para o cancelamento desse cartão, precisamos da sua senha.

– A senha é... Margarida.

Tapando o microfone do seu celular, o Djair sussurrou ao comparsa:

– Digita aí Margarida, ô Cid.

– Ok. Peraí. Mais um pouco. Senha inválida.

– Ô seu Inocêncio, a senha deu inválida. É a sua senha desse cartão aqui que o senhor perdeu que a gente quer. A senha pra saque da sua conta. Entendeu?

– Ah, sim. Desculpe. É verdade. Margarida é a senha pra entrar no banco pela internet, só pra consultas de saldo e tal.

– Ok, seu Inocêncio. E qual é essa senha então? A do saque, viu?

– A senha é Meu Piiiiiiii...

– Ai caceta. Esse velho é maluco – disse o Djair pro Cid, tapando de novo o microfone. Meu Piiiii? Que merda é essa? Ô Cid, eu acho que é algum palavrão isso. Só pode ser. Meu Piiii...? Mas que Meu Piiii? Olha, digita aí meu pinto, meu piru, pau, sei lá. Esses velhos são todos uns tarados de merda. Vai, digita essa joça logo.

– Não tá dando certo não, chefe.

– Ô seu Inocêncio. Essa senha de Piiii aí não tá certa não. Se for um palavrão, pode falar sem medo, viu? Fala direito senão não vou poder cancelar o seu cartão.

– Mas é o Pi. É isso mesmo, como eu falei. É o número do Pi até a quarta casa decimal. Aí, como a senha tinha que ter letra também, eu botei o “Meu” na frente.

– O quê? Como assim, “botou o seu na frente”, seu Inocêncio? Que brincadeira é essa? Botou o seu o quê? O senhor me respeite. Eu sou o gerente.

– Não. Botei o Meu na frente do Piiii. Você não sabe qual é o número de Pi não?

Tapando o microfone mais uma vez, ele pergunta pro topetudo do Cid:

– Ô Cid, seu ameba, qual é o número do Pi? Tu sabes de cor?

– Chefe, vou dizer uma coisa triste para o senhor. Eu não sei nem o número da minha mulher. Quando eu tenho que ligar pra ela eu só busco o nome na lista e ligo. Não sei de cor o número de ninguém. Ainda mais desse tal de Pi aí. Eu sei lá quem é esse cara? Vai ver é gente lá do grupo dos “biquinis pretos”? Essa turma é da pesada! Bandidagem geral mesmo.

– Porra, esse velho já tá me tirando do sério. Acho que vou dar “umas porrada” nele até ele falar a bosta da senha.

– E o plural, chefe, onde fica?

– Ah, Cid, tu vai tomar no cu logo, seu merda.

– Eu só estava ajudando. Nossa! Que violência! Não é umas “porrada”. É umas “porradas”, no plural, concordando com o...

– Chega dessa bosta. Vou voltar aqui pro nosso plano. Foco! Foco!

Djair chamou pelo seu Inocêncio algumas vezes, mas ele não respondeu. Não parecia ter caído a ligação, por isso ele ficou esperando um tempo. Até que a voz surgiu:

– Alô.

– Oi, seu Inocêncio. Pois é. A sua senha não deu certo de novo. Vamos tentar mais uma vez?

– Acho que não é mais preciso, meu amigo. A minha filha chegou em casa pro almoço e disse que já ligou pro banco e cancelou o meu cartão. Me deu a maior bronca quando eu contei que o tinha perdido. Tá aqui uma fera comigo!

– Talquei, seu Inocêncio. Então manda um abraço pra vagabunda da sua filha. E que se foda o senhor também, talquei?

– Igualmente para o senhor e os seus.

E desligou.

 


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

O Mafioso, o Segurança, a Filha e o Amante

 

Eram quase uma família. O segurança Donato trabalhava para o mafioso desde que este chegou da Itália, fazia mais de 30 anos. Seu nome era Alfredo, dom Fredo para todos aqueles que tiveram o desprazer de o conhecer.

Uma figura abjeta, peçonhenta e cruel, que carregava uma grande mágoa por não ter tido um filho, e sim uma filha. Por esta razão, e por tantas tentativas vãs de iniciar a menina nos negócios da família, já tinha dado o caso por perdido. Agora a ideia era encontrar um genro à altura da sua, digamos, veia comercial, ou seja, um bandido inteligente o bastante para casar com sua filha e, ao menos, protegê-la nessa vida.

Dom Fredo estava sempre viajando. Não tinha uma cidade com tamanho bastante para os seus negócios que ele não conhecesse. Desde que chegou aos Estados Unidos, sua vida era detectar novos clientes, parceiros ou nichos para onde pudesse expandir as suas negociatas. Não se sabia bem qual era a sua atuação, com quais elementos ilegais ele tratava, mas drogas, bebidas e posse de terras alheias eram os seus principais interesses financeiros país afora.

A filha do mafioso tinha pouco mais de 20 anos quando, uma tarde, na hidromassagem que ficava ao lado do jardim, perto da quadra de tênis, quase se afogou. De repente, se descuidou ao encostar na parte de trás da banheira, escorregou e o ralo de filtragem de água agarrou os seus cabelos. Ficou se debatendo por alguns minutos com os pés fora d’água até que um segurança, um dos mais novos da equipe, a resgatou, não sem antes ter de fazer uma força descomunal contra a máquina.

Quando conseguiu tirar a moça da água, veio junto, embolado ao seu cabelo, todo o ralo, as mangueiras e também o motor de sucção que compunha o sistema de filtragem. A hidro ficou totalmente danificada e o susto dos empregados que acorreram ao jardim foi enorme, seguido por um também enorme alívio, de ver a menina voltando a si, depois de um pequeno esmaiamento, ou piloura, como queiram.

Pouco tempo depois, sem qualquer esforço, dom Fredo descobriu que a menina estava de caso com o segurança, este mesmo que lhe salvou a vida. Bastava que ele viajasse e a menina dava um jeito de estar com o rapaz. Jantavam juntos, assistiam a filmes até altas horas da madrugada, ouviam música e dividiam uma vida paralela. Contavam, é claro, com a boa vontade dos demais empregados, que notaram que a moça mudou o seu comportamento desde que conheceu o segurança.

Antes calada e sombria, sem interagir com quase ninguém naquela casa, a moça passou a ser amável, conversava com as camareiras, as arrumadeiras. Até a governanta ajudava a encobrir o relacionamento da menina diante do brilho que a pobre trazia nos olhos, coisa que desde a morte da mãe ninguém jamais tinha visto.

Por sua vez, querido por todos os empregados, não só pelos colegas seguranças, o rapaz de repente passou a trazer no semblante a preocupação de que logo o pai da moça ia descobrir tudo. Donato, o braço direito do chefe maior, se esforçava pra ajudar, mas o velho tinha outros meios de saber o que estava acontecendo “na sua própria casa”, conforme sublinhara ao pé do ouvido do segurança-amante.

A questão era como andar no fio da navalha. E todos passaram a se preocupar. O jovem casal aventou a possibilidade de falarem juntos com dom Fredo. A menina principalmente exporia a situação, um acaso do destino, uma paixão súbita e uma convivência até então de muito entendimento e companheirismo. Os dois se gostavam e se davam muito bem, se divertiam juntos e um ansiava pela companhia do outro. Era um encontro perfeito de almas. Algo sublime.

– Passo a navalha na garganta desse moleque e em dois minutos liquido o assunto. Que atrevido, que acinte, onde já se viu um merdinha de um segurança... E essa minha filha desmiolada também vai ter a sua lição. Donato, amanhã cedo avise aos dois que na volta de Chicago quero ter uma conversa com a dupla. Chego na quarta-feira de madrugada e já bem cedo, ao amanhecer do dia, quero dar cabo desse assunto. O mal, já dizia meu tio Arturo, O Caolho, corta-se pela raiz.

O coitado do Donato nem falou nada com a menina. Assim que comunicou ao jovem segurança já foi aconselhando que a fuga seria a melhor escolha e que talvez sair do país fosse o mais prudente nesse caso. Que a vida dele era muito mais importante do que o romance com a filha do dom Fredo e que ele pusesse a cabeça no lugar.

– O senhor acha mesmo que não vale a pena nem conversar com ele? Mesmo a filha dele também pedindo, argumentando?

– Você não conhece o chefe. Em dois minutos ele mete uma bala na sua cabeça e chama alguém pra limpar o sangue do tapete. Quanto a filha ele até que teria alguma questão a relevar, mas vive dizendo que ela só dá problema e eu nem duvidaria se ele se livrasse dela também de algum jeito.

– E se então fugíssemos nós dois?

– Ah, meu caro, como vou te dizer isso? Na primeira esquina da dificuldade ela voltaria rastejando pra casa do pai. Não se iluda. A menina nunca precisou fazer algo mais do que estalar os dedos pra alguém trazer o mundo numa bandeja de prata. São mundo distintos. Por isso, trate de cuidar da sua vida daqui pra frente e dê graças a Deus pela oportunidade de sair vivo dessa situação. Se somar a idade de todos os seguranças dessa casa não daria nem a metade do número de assassinatos que esse Capo já ordenou.

A conversa foi cada vez mais se encaminhando para um cenário que evidenciava o esgoto humano. O rapaz se encolhendo em sua resignação, era de dar pena. Pensou em contar tudo pra sua amada, mas achou que poria em risco a sua vida também, e já bastava a dele nesse fio de navalha.

No domingo, debaixo de chuva, vagueou pelo parque. E todas as mulheres que cruzavam o seu caminho tinham o rosto dela.

Na segunda-feira ele decidiu fugir. Simplesmente ganhar mundo. Ia conversar com ela antes e daria o fora enquanto é tempo, sumariamente.

Na terça não dormiu. Repensou e achou que como homem deveria ficar e ouvir o pai patrão. Que homem seria ele se fugisse de uma simples conversa? Se fosse pra morrer, morreria por amor. Morreria como um homem e não fugindo como um rato.

Na quarta-feira o rapaz amanheceu sentado na escada, na entrada da mansão. O sol ainda vinha no horizonte quando Donato saiu lívido pela porta principal. Se aproximou dele e o mirou fixamente, segurando os seus dois braços.

– O avião caiu logo depois da decolagem, em Chicago. Morreram os dois ocupantes: dom Fredo e o piloto.

O rapaz desmaiou.