Sempre que meu
pai queria se certificar que uma pessoa era mesmo professora, ele perguntava se
ela sabia onde nasce o Rio Amazonas. Era a única pergunta que ele fazia quando
conhecia alguém que lecionasse. Algumas vezes a gente ficava constrangido, é
verdade, dizia que era uma mania dele e depois desconversava. Mas quase sempre
a pessoa interrogada levava na esportiva, para nosso alívio.
Saber onde
nasce o Rio Amazonas, para ele, era sinal de inteligência, de sapiência. Habitualmente
ele trazia esta pergunta no bolso e a usava sempre que a oportunidade surgia.
Até hoje eu
fico pensando em como meu pai tinha tantas lembranças do seu tempo de escola.
Me surpreendo principalmente quando, além de constatar a sua facilidade de
relembrar coisas desses tempos, me dou conta de que ele estudou apenas por
quatro anos, ou seja, até a quarta série do antigo primário.
Mesmo ainda
adolescente, quando a gente sentava pra falar sobre escola, primeiro já
sabíamos que em algum momento ele ia recitar as frases inesquecíveis que
apontavam o local da nascente do Rio Amazonas, claro. Mas logo em seguida ele falava
dos professores, de passagens ocorridas nas aulas, de dias em que acontecia
qualquer coisa diferente no caminho pra escola ou mesmo na volta pra casa. Ele
ia falando e a gente ia imaginando a escola, a sala, a turma, os alunos, tudo.
Outra coisa
que ele lembrava com bastante clareza e precisão era o seu livro escolar
preferido: Meu Tesouro, 4ª Série. Ele estendia as mãos como se o livro
estivesse pousado nelas e ia descrevendo os detalhes, que tinha um mapa do
Brasil em verde, no lado esquerdo inferior da capa, e que, bem lá no alto,
trazia o nome das duas autoras em letras grandes.
– Parece que
eu estou vendo o livro aqui na minha frente – dizia meneando a cabeça. Não sei
o que foi feito dele. Minha mãe deve ter jogado fora, sei lá. Em pouco tempo eu
saí da escola e logo comecei a trabalhar. Aí, nunca mais o vi.
O fato é que
de tanto ouvir essas histórias do meu pai, do seu tempo de escola, pouco tempo na
verdade, uma vez eu decidi que ia procurar o tal Meu Tesouro 4ª Série. Primeiro
pra saber se ele existia mesmo. E depois, quem sabe, pra conferir se algum ainda
estava à venda.
Com a ajuda da
Regina, que é craque em garimpar coisas na internet, localizamos um sebo que
tinha. O livro estava bem acabadinho, surradinho, pois era apenas a 6ª Edição,
ou seja, acreditamos ter sido impressa no início da década de 1950, que era um
pouco depois do período escolar do meu pai. A nossa preocupação com o período é
que, às vezes, a depender das edições, acontecem as revisões e ampliações e,
com elas, as mudanças de capa. Para o propósito que a gente queria, era
imprescindível que fosse a capa que meu pai conhecia, por razões óbvias. Nosso
objetivo era que, ao bater o olho no livro, ele o reconhecesse como a um velho
companheiro, um amigo de infância.
Para nossa
sorte, a surpresa chegou pertinho do Natal. Perfeito para se transformar no
presente que a gente queria. Assim que manuseou o pacote ele foi logo dizendo
que fazia tempo que não ganhava um livro de presente. E aquela observação foi a
prova de que ele jamais esperaria ter nas mãos o seu livro preferido. A nossa
expectativa foi grande até a revelação final, até o último papel de presente
ser removido.
Minha mãe foi
a primeira a reconhecer o livro e a homenagem. Foi a primeira também a esconder
de todos nós os olhos molhados de emoção. Fato é que tivemos todos de segurar o
choro quando meu pai abraçou o livro, repetindo o seu título, que lia sem
parar, apontando para a capa como se fosse um menino, novamente a caminho da
escola.
A cada virada
de página ele fazia um comentário e nos mostrava o texto impresso, a começar
pelo capítulo do Rio Amazonas, logo no início da partição de Geografia. A
gente, que já sabia da sua mania de perguntar o local do nascimento do Rio, só
tinha o trabalho de rir um pro outro, confirmando que era só uma questão de
tempo até que o Planalto de La Raya fosse
mencionado. A seguir ele sublinharia, para o nosso deleite, o complemento da
lição geográfica:
– Nos confins
meridionais do Peru.
E a gente ria
dele e com ele.
Muitas vezes
conversamos sobre aquele Seu Tesouro. Uma vez ouvi, com espanto, os nomes de
dois professores que, do nada, no meio de outras lembranças, ele mencionou. Eram
a dona Ernestina e o seu Gonçalo. Ela de Geografia e ele de Ciências Físicas e
Naturais.
Engraçado
lembrar como ele mencionava o livro de uma maneira interessante. No meio da
frase ele dizia, por exemplo, “Quando menino, eu sempre conferia na pasta se
estava levando o Meu Tesouro pra aula”, ou se referindo ao tempo presente: “Vou
deixar o Meu Tesouro aqui na prateleira, pra ficar mais à mão quando eu quiser
ler”. Ou seja, ao invés de falar livro ele falava “meu tesouro”, dando um
sentido que ia além do seu título.
Desde o ano de
2015, o que meu pai tinha como o Seu Tesouro passou a ser o Meu Tesouro. Com a
partida do dono legítimo eu meio que herdei a sua preciosa e querida publicação.
Ela agora mora bem aqui na minha estante, junto de outros livros que considero
também meus tesouros.
Quando meu filho
veio me visitar, recentemente, sentado à mesa eu notei que ele olhava com
atenção a tal estante, presa à parede. Primeiro ele viu os retratos, muitos
retratos. Depois os objetos diversos, de povos diversos. Só então ele começou a
ler alguns títulos de livros, reconhecendo o nome de alguns dos seus autores,
de quem eu vivo falando e contando causos.
Não se pode
precisar a data, mas chegará o dia em que os meus tesouros, os meus e o do meu
pai, novamente mudarão de mãos.
Que meu pai
abençoe também essa mudança.
Um Feliz Ano
de 2024 para todos nós.