sábado, 30 de dezembro de 2023

Meu Tesouro


Sempre que meu pai queria se certificar que uma pessoa era mesmo professora, ele perguntava se ela sabia onde nasce o Rio Amazonas. Era a única pergunta que ele fazia quando conhecia alguém que lecionasse. Algumas vezes a gente ficava constrangido, é verdade, dizia que era uma mania dele e depois desconversava. Mas quase sempre a pessoa interrogada levava na esportiva, para nosso alívio.

Saber onde nasce o Rio Amazonas, para ele, era sinal de inteligência, de sapiência. Habitualmente ele trazia esta pergunta no bolso e a usava sempre que a oportunidade surgia.

Até hoje eu fico pensando em como meu pai tinha tantas lembranças do seu tempo de escola. Me surpreendo principalmente quando, além de constatar a sua facilidade de relembrar coisas desses tempos, me dou conta de que ele estudou apenas por quatro anos, ou seja, até a quarta série do antigo primário.

Mesmo ainda adolescente, quando a gente sentava pra falar sobre escola, primeiro já sabíamos que em algum momento ele ia recitar as frases inesquecíveis que apontavam o local da nascente do Rio Amazonas, claro. Mas logo em seguida ele falava dos professores, de passagens ocorridas nas aulas, de dias em que acontecia qualquer coisa diferente no caminho pra escola ou mesmo na volta pra casa. Ele ia falando e a gente ia imaginando a escola, a sala, a turma, os alunos, tudo.

Outra coisa que ele lembrava com bastante clareza e precisão era o seu livro escolar preferido: Meu Tesouro, 4ª Série. Ele estendia as mãos como se o livro estivesse pousado nelas e ia descrevendo os detalhes, que tinha um mapa do Brasil em verde, no lado esquerdo inferior da capa, e que, bem lá no alto, trazia o nome das duas autoras em letras grandes.

– Parece que eu estou vendo o livro aqui na minha frente – dizia meneando a cabeça. Não sei o que foi feito dele. Minha mãe deve ter jogado fora, sei lá. Em pouco tempo eu saí da escola e logo comecei a trabalhar. Aí, nunca mais o vi.

O fato é que de tanto ouvir essas histórias do meu pai, do seu tempo de escola, pouco tempo na verdade, uma vez eu decidi que ia procurar o tal Meu Tesouro 4ª Série. Primeiro pra saber se ele existia mesmo. E depois, quem sabe, pra conferir se algum ainda estava à venda.

Com a ajuda da Regina, que é craque em garimpar coisas na internet, localizamos um sebo que tinha. O livro estava bem acabadinho, surradinho, pois era apenas a 6ª Edição, ou seja, acreditamos ter sido impressa no início da década de 1950, que era um pouco depois do período escolar do meu pai. A nossa preocupação com o período é que, às vezes, a depender das edições, acontecem as revisões e ampliações e, com elas, as mudanças de capa. Para o propósito que a gente queria, era imprescindível que fosse a capa que meu pai conhecia, por razões óbvias. Nosso objetivo era que, ao bater o olho no livro, ele o reconhecesse como a um velho companheiro, um amigo de infância.

Para nossa sorte, a surpresa chegou pertinho do Natal. Perfeito para se transformar no presente que a gente queria. Assim que manuseou o pacote ele foi logo dizendo que fazia tempo que não ganhava um livro de presente. E aquela observação foi a prova de que ele jamais esperaria ter nas mãos o seu livro preferido. A nossa expectativa foi grande até a revelação final, até o último papel de presente ser removido.

Minha mãe foi a primeira a reconhecer o livro e a homenagem. Foi a primeira também a esconder de todos nós os olhos molhados de emoção. Fato é que tivemos todos de segurar o choro quando meu pai abraçou o livro, repetindo o seu título, que lia sem parar, apontando para a capa como se fosse um menino, novamente a caminho da escola.

A cada virada de página ele fazia um comentário e nos mostrava o texto impresso, a começar pelo capítulo do Rio Amazonas, logo no início da partição de Geografia. A gente, que já sabia da sua mania de perguntar o local do nascimento do Rio, só tinha o trabalho de rir um pro outro, confirmando que era só uma questão de tempo até que o Planalto de La Raya fosse mencionado. A seguir ele sublinharia, para o nosso deleite, o complemento da lição geográfica:

– Nos confins meridionais do Peru.

E a gente ria dele e com ele.

Muitas vezes conversamos sobre aquele Seu Tesouro. Uma vez ouvi, com espanto, os nomes de dois professores que, do nada, no meio de outras lembranças, ele mencionou. Eram a dona Ernestina e o seu Gonçalo. Ela de Geografia e ele de Ciências Físicas e Naturais.

Engraçado lembrar como ele mencionava o livro de uma maneira interessante. No meio da frase ele dizia, por exemplo, “Quando menino, eu sempre conferia na pasta se estava levando o Meu Tesouro pra aula”, ou se referindo ao tempo presente: “Vou deixar o Meu Tesouro aqui na prateleira, pra ficar mais à mão quando eu quiser ler”. Ou seja, ao invés de falar livro ele falava “meu tesouro”, dando um sentido que ia além do seu título.

Desde o ano de 2015, o que meu pai tinha como o Seu Tesouro passou a ser o Meu Tesouro. Com a partida do dono legítimo eu meio que herdei a sua preciosa e querida publicação. Ela agora mora bem aqui na minha estante, junto de outros livros que considero também meus tesouros.

Quando meu filho veio me visitar, recentemente, sentado à mesa eu notei que ele olhava com atenção a tal estante, presa à parede. Primeiro ele viu os retratos, muitos retratos. Depois os objetos diversos, de povos diversos. Só então ele começou a ler alguns títulos de livros, reconhecendo o nome de alguns dos seus autores, de quem eu vivo falando e contando causos.

Não se pode precisar a data, mas chegará o dia em que os meus tesouros, os meus e o do meu pai, novamente mudarão de mãos.

Que meu pai abençoe também essa mudança.

Um Feliz Ano de 2024 para todos nós.

 



segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O Aniversário da Maribel

 

Um jeito bem prático de entregar a própria idade é dizer que as festas mais importantes da adolescência foram os aniversários de 15 anos. Eu não vou fazer isso, embora admita que durante o período que precedeu a festa da Maribel, no colégio não se falava em outra coisa.

As amigas mais chegadas guardavam os segredos do festejo como se fossem ouvidos no confessionário. As damas iam com roupas combinadas? Ia ter missa? E valsa? Que banda que ia tocar? E qual o tema escolhido para o bolo? Eram essas as conversas durante aqueles dias de junho, mês que já era muito esperado normalmente, por anunciar o fim do semestre escolar, mas agora, com o aniversário da Maribel, muito mais.

A Maribel era uma menina rica, mimada e chata. Não entrava nas rodinhas do vôlei, na aula de educação física, não ajudava nas pilhas que a gente criava com os professores e tampouco ficava no colégio depois da aula, batendo papo com a turma do mal, como eram chamados os fumantes precoces da sala. Pior, a gente desconfiava que ela era, isso sim, uma X-9, num tempo em que essa denominação ainda nem existia.

Eu não era fumante, mas gostava demais daquelas conversas, quase todas pautadas pelas ótimas aulas de História do professor Wellington, um comunista convicto, muito bem-humorado e satírico, que gostava de fazer suspense enquanto pedia licença para fechar a porta da sala. Depois, em tom irônico, garantia que o assunto ia ficar bem mais interessante com a participação dos alunos e, claro, com a porta fechada para a ditadura. A gente ria e a partir dali a nossa atenção era 100% na oratória dele, rebuscada e aprazível.

Junto com a professora Wanda, uma polonesa austera como a Matemática que lecionava, o mestre Wellington completa a dupla das pessoas mais inteligentes que conheci durante todo o meu aprendizado escolar. E minha memória se esforça para que certas imagens de ambos jamais sejam apagadas e permaneçam sempre acessíveis, quando acionadas na ROM.

Eu estava a caminho da cantina, no intervalo das aulas, quando uns colegas me viram e chamaram.

– Nós estamos planejando o aniversário da Maribel. Você vai com a gente, né? Vamos combinar de irmos juntos pra facilitar a entrada.

– Acho que não vou, não. Parece que tem convite. Eu não tenho. Então, sem chance de eu entrar – disse, tentando me esquivar.

– Como assim? Você vai com a gente sim.

– Mas eu não tenho convite – reiterei.

– A gente também não tem. Mas vamos entrar, tranquilo. A gente dá um jeito.

– Estamos pensando numa alternativa que parece bem certeira. Ainda não tá decidido.

– É, a gente vai pular o muro.

– Quê isso, pessoal. Pular o muro? – falei, com certo descrédito.

– Ué, eu já entrei em um monte de festa pulando o muro. Não tem nada demais, não.

Aquela conversa torta parecia vir da mesma turma que matava aula ou se reunia depois do horário atrás da quadra de esportes. Eu pensava comigo: que coisa mais sem nexo. E eu é que não vou me aventurar numa empreitada de pular muro pra entrar em festa. Já me imaginei todo arrumado, camisa esticadinha, passada pela minha mãe, e eu todo amarrotado só pra invadir a tal festa. Jamais.

– Nós não vamos invadir, não. Esse termo é muito pesado. É que nós também somos amigos da Maribel e, por isso, vamos apenas festejar com ela os seus 15 aninhos... É isso!

A resposta atravessou os meus pensamentos e me surpreendeu a ponto de eu duvidar da própria realidade. Eu não estava só pensando alto? Como alguém conseguiu ouvir? Olhei em volta e, assustado, dei por encerrado aquele intervalo e voltei pra sala de aula.

Ainda na manhã do dia da festa encontrei o Luquinha na rua, perto de casa. Na mesma hora ele falou da noite e que me encontraria lá. Eu só fiz que sim com a cabeça, já não querendo esticar o papo, decidido que estava a não participar daquela loucura. Como eu disse, eu nem gostava muito da Maribel, aquela menina chata e mimada.

Enfim, como todo evento suntuoso que se preza, nas semanas seguintes a festa da Maribel tomou conta das conversas por toda a escola. Incontáveis detalhes mirabolantes, até inacreditáveis, foram surgindo com o passar dos dias, cada qual com a sua pormenoridade inerente. Teve segurança da festa pego no flagra, beijando a tia da dona da casa, teve gente entrando com a roupa rasgada – dizem que foi pulando o muro –, teve polícia dando dura na entrada da rua e revistando maldosamente só as meninas, e teve relato de gente vomitando em quase todos os cômodos do casarão da família.

Quando tudo parecia estar voltando ao normal, tendo o tempo da festa ficado para trás, bem distante do cotidiano da escola, eis que surge a insossa da Maribel com um imenso álbum de fotos. Um não, dois. Pronto, as rodinhas em torno da menina voltaram disputadíssimas e, de longe, só se via e ouvia as risadas das amiguinhas diante de cada fato novo relembrado.

Nas nossas rodas de conversas, entretanto, bem diferente da das meninas com o álbum, o exercício de imaginação corria solto e farto. No meio do intrincado roteiro do “quem ficou com quem” e “como fulano entrou”, um dos caras mais calados da turma surgiu com uma novidade:

– Vocês conhecem a mãe da Maribel, né?

– Sim, conhecemos.

– Vocês sabem que ela também passou mal na festa e, na manhã seguinte, foi até internada?

– Eu soube que ela passou mal, mas da internação eu não sabia.

Daí em diante o entrecho que o rapaz passou a narrar foi que, simplesmente, às 4 horas da madrugada baixou o santo, não na porta-bandeira, como diria João Bosco, mas na mãe da Maribel. Do nada, a mulher começou a se estremunhar e foi balangando de um lado ao outro, pela sala. A prima e a sobrinha, já sabendo que ela é da macumba, ficaram segurando a dona com força, pela cintura, pra ela não se machucar. O marido, quando viu tudo de longe, foi acudir também. Só que ele mandou parar a música. E foi aí que tudo piorou, pois todo mundo percebeu que o problema era com a dona lá e ela passou a ser o centro da festa. Ninguém sabia bem o que fazer com a tontura da pobre e a cena foi virando um furdunço geral.

Por outro lado, como cobra não voa, quem viu todo o alvoroço jura, impiedosamente, que aquilo foi o melhor da festa. E foi já na manhã seguinte que o marido resolveu internar a mulher. Dizem que o propósito dele era abafar o caso, ou seja, fazer parecer que o que a esposa teve foi um mal súbito, médico, e não uma incorporação espírita, um transe mediúnico, enfim.

“Essa gente, quase todos pretos, fazem isso só pra mostrar aos outros quase pretos, e são quase todos pretos, como é que pretos, pobres e mulatos, e quase brancos, quase pretos de tão pobres, são tratados.”

Quando a gente recorre a Caetano pra encerrar um conto, a sensação, quase sempre, é de estar em uma magna aula de História. Com a porta da sala fechada.

E fim.

 


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Renaldo


A mãe já tinha avisado ao filho, por telefone, que havia mandado a carta, junto com um pacote, pelos Correios. O rapaz tinha chegado do trabalho e antes de jantar separou a caixa em cima da mesa, pra ler tudo com calma. Ele tinha ido morar em Salvador logo assim que se formou, tendo sido estagiário da empresa, com a promessa de contratação, o que acabou por se cumprir, fazia já uns cinco anos.

Nesse período, a mãe tinha ido visitá-lo uma única vez. E ele só retornara a Minas Gerais apenas em um raro momento, por ocasião do sepultamento do pai, seu grande incentivador e a pessoa que mais se orgulhava da carreira que escolhera.

 A mãe dizia na carta: “Não sei o que seria dessa casa sem a ajuda da Marlene. O armário do seu pai é um túnel do tempo e eu me surpreendi várias vezes ao encontrar objetos que, por certo, já julgava perdidos por vários anos. Achei coisas suas da escola, presentes do dia dos pais, recortes de jornais com matérias de partidas futebol, relógios velhos, canetas idem, cintos, chaveiros, bonés variados, olha, um saco de lembranças sem fim aquele armário."

Ele ia lendo e rindo, conforme recordava de algumas passagens com o pai, inclusive as em que ajudou a guardar justamente algumas daquelas lembranças.

“Entre as coisas que encontrei, separei esta, especificamente pra te enviar. Eu nem sabia que ele tinha guardado. Juro a você. E como envolve uma relação direta entre vocês dois, não me senti à vontade para me desfazer desse objeto. Com toda a certeza, você saberá, melhor do que eu, dar o destino adequado para ele. Fique com Deus e que a paz da nossa mãe Oxum te guarde e te livre de todo o mal.”

O rapaz nem precisou abrir muito a caixa. Assim que venceu uma das abas da lateral, avistou um pedaço da camisa do seu querido Atlético Mineiro e desabou em um choro copioso, apoiando a cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.

Chorou toda a saudade que não havia chorado quando do enterro do velho pai. Depois, entre soluços, continuou a abrir o pacote e, com cuidado, foi desdobrando a camisa à procura do nome do seu ídolo, que sabia estar escrito nas costas. Assim que a esticou por completo, enxugou os olhos e leu em voz alta: Renaldo.

 A história que só aqueles três indivíduos conheciam dava conta de que, desde menino, o filho era doido pra ter uma camisa do time do coração. A família não tinha dinheiro pra esses luxos e o pai decidiu que iria juntar uma graninha, aos poucos, para surpreender o filho no aniversário, justamente no ano em que ele havia passado no exame para a faculdade.

O que era pra ser uma festa, uma realização, virou decepção e um grande mal-estar. Assim que viu o nome do jogador grafado errado na camisa – Renaldo e não Reinaldo – o rapaz se passou e esbravejou com o pai.

Aquilo foi um rompante. Ele mesmo, poucos dias depois, se deu conta da atitude desproporcional e ruim e pediu desculpas ao pai e também à mãe. Falou que reconhecia o esforço que ambos fizeram em prol da sua educação, dos seus estudos, e que, com muita luta, conseguiram dar as melhores condições para que ele alcançasse a sua tão sonhada vaga no ensino superior. Por fim, louvou os méritos dos pais por tudo o que teve na vida.

Ao relembrar esse passado o rapaz ficou ali parado, na mesa. Pensava na surpresa da mãe ao encontrar a camisa no armário do pai e que ela, provavelmente, deve ter revivido tudo aquilo novamente, assim como ele próprio estava fazendo naquele momento. E ficou curioso pra saber o que a mãe pensava sobre tudo e qual sentimento ela preservava daqueles dias, passados todos esses anos.

Quando se falaram por telefone, ambos não conseguiam lembrar que fim tivera a tal camisa. No meio de todo aquele embaraço, simplesmente a camisa desapareceu e ninguém jamais a viu. O assunto, por sua vez, jamais voltou à tona. Era uma espécie de tabu e tampouco o pai o abordava para confidenciar, com a esposa, esse ou aquele sentimento com o erro que cometeu.

– A única coisa que eu me arrependo foi não ter usado a camisa que meu pai me deu. Eu fui covarde. Eu tive vergonha de que todos vissem o nome errado do Reinaldo e eu teria que dizer que foi meu pai que mandou escrever daquele jeito. Mas ele não sabia escrever direito. E eu tive vergonha. Isso me deixa muito mal até hoje, mãe.

– Eu acho que você deve esquecer isso, filho. Já passou. Seu pai tem muito orgulho de você. Sempre teve e tem ainda. Se eu fosse dar um conselho pra você, agora que é um homem formado, um engenheiro importante...

– Ah, mãe, nada disso. Sou seu filho muito mais que engenheiro. Muito mesmo. Fala.

– É que tudo isso que você está pensando sobre a camisa, todas essas lembranças, esse arrependimento em relação à memória do seu pai, tudo isso vai se encaixar quando você vestir essa camisa. Pode acreditar. Os nossos anjos da guarda, os nossos guias espirituais estão só esperando pelo seu sinal pra te dar essa benção, livrar você desses pensamentos aflitivos e, ao final, você vai perceber que a comunhão com o seu pai jamais se quebrou. Porque ele sempre esteve e sempre vai estar com você. E você sabe disso, tenho certeza. Fica em Paz. Deus te abençoe, filho.

– Tchau, mãe. Deus me abençoou quando me fez seu filho. A sua benção.

Por algumas noites, naquela semana, o filho sonhou com o pai. Quase não sabia contar uma sequência, uma cena, não tinha um enredo o sonho, mas sabia que tinha estado com o pai.

No feriado, abriu a gaveta e deu de cara com a camisa. Vestiu. Simplesmente. Olhou no espelho. Estava um pouco apertada. Mas não muito. Dava pra usar.

Saiu com ela envergada de um sentimento novo. O amigo com o qual marcou de encontrar, de longe já via o seu sorriso aberto.

– Camisa do Galo?

– Exatamente. Do maior jogador do Galo e do Brasil.

– Linda a camisa. Parabéns. É nova, é?

– Não é não. Meu pai me deu faz uns sete, oito anos. Ele escreveu Renaldo nela e eu tinha vergonha de usar. Mas agora não tenho vergonha, não. Meu pai não tinha estudo, não sabia escrever direito. Mas me deu ela com muito esforço e cheio de amor. Então agora vou usar sempre, em homenagem a ele e a tudo que ele me deu nessa vida.

– Bacana você usar a camisa. Bacana a história. E parabéns de novo pela camisa. E pelo seu pai.

– Com a benção da minha mãe Oxum.

 

 

 

Essa crônica é dedicada ao Tony, meu amigo de Salvador.

Comemora também os 10 anos desse Blog, iniciado com o lançamento do livro Antes de Mim, exatamente no dia 22 de novembro de 2013. Esta é a crônica de número 225.



segunda-feira, 13 de novembro de 2023

O Exame


Era um dia lindo de sábado, daqueles que a gente gosta de aproveitar o sol pra ficar refestelado, confortavelmente, só tirando os casacos à medida que o corpo vai esquentando. O tempo fica preguiçoso, o ventinho frio nem incomoda e os passarinhos, sempre por perto, exibem o seu linguajar de cantos e pios infindáveis.

A um certo momento a campainha toca e entra pela casa, esbaforida, a filha da dona Elvira, cheia de papéis nas mãos. Nervosa, ela começa a selecionar algumas folhas, enquanto anuncia o enredo.

– Mamãe, ficaram prontos os seus exames. Passei no laboratório agora e peguei tudo lá. As notícias não são nada boas e eu estou muito preocupada.

– O que tem de errado com os exames? – acudiu a tia, vinda do quarto apressada.

– Ah, eu nem sei mais qual é o pior. Tá tudo meio estranho. Mas o colesterol está horrivelmente preocupante. Minha mãe vai ter que fazer uma dieta pra baixar esse número. Vamos ter de ficar de olho e na verdade será um novo modo de vida daqui pra frente. Essas coisas que ela costuma comer, vai ter de parar imediatamente, por causa do colesterol.

No canto da varanda, com sua calma costumeira a mãe suspirou.

– Olha, eu só sei dizer que não estou sentindo nada. Durmo bem, tomo os meus remedinhos e me sinto ótima. Nem gripe eu pego ultimamente. Não entendo a razão desse alvoroço todo, se vocês querem saber.

– Olha pra mim, mamãe. A gente pode estar se sentindo bem. Ótimo que seja assim. Mas os exames são os exames. São esses números que dizem o quanto a gente está bem de verdade ou não. Então, com esse colesterol do jeito que está aqui, a gente tem de fazer alguma coisa. É risco de vida mesmo. Coisa séria. Vamos ter que cortar umas coisas da sua alimentação, mas é tudo pro seu bem.

– Eu até entendo que a gente precisa sempre verificar o sangue, os glóbulos, as hemácias e todas essas coisas. Não me nego a isso. Eu só digo que estou bem e que ao me sentir bem os índices aí desses exames deveriam estar bem também. É uma coisa lógica.

– Mamãe, não tem nada de lógica. É medicina isso. Ciência.

Enquanto a pobre da dona Elvira continuava ali na varanda, curtindo o seu solzinho da manhã, lendo o seu jornalzinho tranquilamente, a irmã e as duas filhas decifravam a papelada, analisando as tabelas e os percentuais contidos nos exames que ela fizera recentemente e que resultou em todo esse sobressalto.

– Pelo jeito tem que tirar tudo de gordura, saturada principalmente, sal, açúcar, processados, embutidos, o pão.

– Sim, o café também. O vinho. Batata também não pode. Fritura, manteiga, refrigerante.

– O refrigerante pode tirar todo – concordou a dona Elvira, escondendo um sorriso sarcástico por trás da página do jornal estendida.

– Ah, tá. A senhora nem bebe refrigerante!

– Eu até faço essa dieta, sem problema. Mas ela não precisa ser assim tão rigorosa. Não dá pra ser moderada? Como eu já disse, estou me sentindo muito bem, obrigada, e na minha comida do dia a dia não tem nada que seja assim, tão prejudicial à saúde. Eu como de tudo, e tudo moderadamente.

– Pois é, mamãe, mas os exames...

– Ah, os exames...

– Os exames, sim. A gente tem de se basear por aquilo que eles mostram e tentar conviver com as evidências. Mas isso vai ser só até que os índices baixem um pouco e nos deem alguma resposta. Aí a gente vai liberando algumas coisas, entende? – tentou conciliar a filha mais nova.

Definitivamente, não era pela saúde de ferro da dona Elvira, nem pelos seus 93 anos, mas toda a família ficou bem surpresa pela rapidez como tudo mudou. De repente, passou a ser obrigatória a tal da restrição alimentar da idosa. E isso assustou a todos. Num momento estava tudo bem e, no outro, todos esses números aí, exigindo um grande cuidado. “Tudo é muito rápido nessa vida”, chegaram a dizer alguns parentes mais distantes.

O fato é que, nos primeiros dias foi uma luta ferrenha pra que a pobre senhora cumprisse aquela sina. E nos segundos dias podemos dizer o mesmo, assim como nos terceiros. Conforme o tempo ia passando, as pessoas só perguntavam como estava indo o tratamento e como estava o humor da dona Elvira, submetida a um esforço que efetivamente ela não concordava de jeito nenhum.

Estava quase completando duas longas semanas daquela tortura quando, de surpresa, a filha entra novamente pela casa da mãe. Era início de noite e ela tinha saído do trabalho direto pra lá.

Assim que ela entrou, um tanto confusa, não disse coisa com coisa. Primeiro foi logo pedindo desculpas, que o técnico ligou, a máquina deu erro, um tal de reagente. Depois, no mesmo fôlego perguntou se tinha vinho em casa, e que ela tinha trazido queijo... Como assim? O que tem o queijo com isso? – perguntou a tia.

Evidente que ninguém entendia nada daquela conversa. Até que o marido, que vinha logo atrás, passou na cozinha e trouxe um copo d’água.

– Calma, respira. Começa tudo desde o início que assim ninguém consegue te entender.

A filha então se acalmou e enfileirou as palavras pertinentes:

– Eu recebi uma chamada hoje à tarde. Era do laboratório. Eles estavam ligando pra pedir desculpas porque uma das máquinas de análise deu defeito e só agora eles descobriram. Parece que os reagentes estavam vencidos e as amostras ficaram com erro. Eles explicaram que todos os exames feitos durante os últimos 15 dias deram resultados errados, com os números acima do normal, muito acima do real, incluindo o da mamãe.

– Então ela não está com o colesterol alto – disse a tia.

– Isso. Não está. E nem precisava ter feito essa dieta maldita.

– Então, agora, tá tudo liberado como antes – sentenciou a outra filha.

– Claro que vamos ter de refazer todos os exames, pra confirmar isso e tal.

– Mas a princípio tá tudo normal – reiterou.

– Sim, a princípio, sim. Por isso que gente trouxe um queijo bem gostoso e o vinho chileno que ela gosta – irrompeu o genro, entrando pela sala com a garrafa já aberta e pegando as taças na cristaleira.

Erguendo o primeiro brinde, a mãe, aliviada, de repente virou a dona da festa. E entre os votos de saúde e vida longa, foram tratar logo de avisar a toda a família, tendo ao fundo o barulho dos cálices de vinho, tilintando como se fossem música.

Passado algum tempo, depois de ter atendido o telefone para falar com as netas e algumas amigas, dona Elvira se prepara pra levantar da cadeira, ajudada pela filha.

– Mas olha, que confusão essa. Desde o começo eu falei que estava ótima. Falei que nem gripe eu pego. Que tenho saúde de ferro. Eu sabia que estava bem, ora. E sabia que os exames tinham de estar bem também, ora pois. Eu disse, eu disse. Mas a verdade é que, nessa casa, ninguém me ouve mesmo! Está comprovado!

E saiu resmungando na direção do banheiro, enquanto todos escondiam o próprio riso.

 

 


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O Abraço


Depois de muito insistir, eu consegui convencer minha mãe a ir assistir comigo a um dos eventos dos Jogos Panamericanos, que estavam sendo disputados no Rio de Janeiro.

O público desse tipo de evento, mesmo que o estádio seja o Maracanã, não é aquele dos jogos de futebol.  Reinava uma tranquilidade geral no entorno do complexo esportivo. Algo, digamos, bem mais saudável do que o normal, com mais crianças, mulheres, famílias inteiras inclusive.

Outro aspecto interessante daquele Pan é que não havia torcida contrária, violenta ou tóxica. Assim, mesmo quem não torcia para o Brasil vinha assistir com o espírito olímpico, imbuído do mais legítimo fair play, que é o mínimo que se pode esperar de alguém que, em algum tempo da vida, recebeu alguma educação.

No entorno do Maracanã, naquela tarde, todo mundo cumprimentava todo mundo, falava com quem não conhecia, um dava informação ao outro, indicava o local do assento, uma maravilha. Em cada esquina, nas imediações do estádio, havia grupos de dança e música se apresentando, confraternizando, fazendo referência a alguma região do Brasil ou mesmo a algum outro país.

Além da minha mãe, estávamos eu, minha irmã e meu filho. Quando a gente parou pra tirar fotos, bem em frente ao maior ponto de encontro do Maracanã, a estátua do Bellini, minha mãe avistou um rapaz com um enorme cartaz nas mãos. Era a entrada principal e por isso estava mais cheia que as demais. Nós custamos a entender o que estava escrito. Foi só mesmo depois, quando ele se virou que, finalmente, a gente conseguiu visualizar toda a frase que dizia: “Abraços Grátis pelo PAN”.

Eu lembrei que já tinha lido alguma coisa nos jornais sobre aquele movimento, que tinha sido criado na Austrália, mas nunca tinha visto pessoalmente como aquela novidade se desenvolvia. Para a minha mãe, entretanto, aquilo era pura mágica. Ela sempre fazia questão de abraçar a gente, os filhos, os netos, os amigos, os amigos dos filhos, e sempre dizia algo positivo sobre o gesto de abraçar: que era muito bom pelas trocas de energias; que tirava a negatividade que ficava presa nos corpos; que era um gesto de fraternidade entre as pessoas e que, em certas ocasiões, era capaz de mudar até o estado de espírito e o humor.

Com tudo isso aqui narrado, não preciso dizer que minha mãe foi a primeira a se manifestar ao ver aquele cartaz.

– Claro que eu vou lá abraçar o menino! Não tenham a menor dúvida.

Fomos. Não só fomos acompanhá-la, como ainda ouvimos novamente todos aqueles motivos que ela se divertia em elencar sobre os benefícios terapêuticos dos abraços. O menino, por sua vez, ficou realizado por encontrar alguém que “entendia” o que era aquela inovação e ainda confirmava a prática e tudo que ele mesmo receitava às pessoas mais incrédulas.

Por pouco minha mãe não desistiu de ver o jogo pra ficar ali com ele, a distribuir abraços a torto e a direito. Ainda mais quando ele fez um histórico da mobilização, dos eventos em outros países e pelo mundo afora. Aí ela teve mais certeza ainda de que suas intuições tinham o respaldo de muito mais gente no planeta.

Foi difícil a gente se despedir do rapaz e entrar no estádio. Com muito custo achamos os nossos assentos e pudemos presenciar o futebol feminino do Brasil ganhar a medalha de ouro panamericana, com Marta e companhia dando show em campo.

Ao final, demos uma volta pelas dependências do Maracanã, que tinha sido reformado para os Jogos, e como estava tudo já meio vazio, ainda paramos pra comer um belo de um cachorro-quente. Não me lembro quem iniciou a suspeita mas, ao voltar do banheiro, alguém perguntou:

– Eu estou doido de vez ou nós não tiramos uma única foto com o Marcelo, o garoto dos abraços?

– É mesmo, acho que não tiramos. Putz.

– Depois das fotos, ali no Bellini, nós entramos direto. Estranho. E que pena!

Foi quando minha mãe tratou logo de resolver a questão:

– Que pena nada, gente. Vamos lá fora procurar o Marcelo que eu quero tirar uma foto com ele.

Foi um tremendo aperto no coração. Quando chegamos lá fora estava tudo já bem vazio. Nem pipoqueiro, nem sorveteiro, nem o Marcelo dos abraços. Cada um foi até uma esquina pra verificar, perguntar para algumas pessoas, e nada do rapaz. A gente ficou triste, lamentando o esquecimento de tirar a foto? “Puxa vida”, disse alguém. “Ninguém se deu conta”, lamentou outro.

Nesse ínterim o Deco, meu filho, na intenção de levantar o astral de todos nós, pegou a câmera e foi olhar as fotos que a gente tinha tirado até então. Tinha fotos em frente ao Bellini, com a linda pira panamericana ao fundo, com os painéis dos mascotes, além de outras tantas imagens que a gente fez dentro do estádio, durante o jogo e também na hora da premiação. Ele mostrava as fotos na tela da câmera e a gente ia olhando, meio sem animação.

Depois de um tempo ali, passando as fotos pra frente e pra trás, de repente ele levantou rápido os olhos e veio na minha direção. Com a tela da câmera virada pra mim ele falou:

– Pai, olha essa foto aqui que eu achei.

Eu olhei, pisquei algumas vezes, esfreguei os olhos e mesmo assim não acreditei. Era a foto da minha mãe com o rapaz dos abraços, o Marcelo. Os dois em pose, segurando o cartaz de abraços grátis.

– Incrível!

– Ué, de onde essa foto saiu?

Mostramos pra minha mãe e ela disse um “como assim?”, meio sem jeito. Quando ouvimos isso todos nós começamos a rir junto com ela, sem acreditar na imagem que a câmera mostrava.

O fato é que nenhum de nós lembrava daquela foto ou sequer sabe dizer quem a tirou.

É que a felicidade pode estar nas grandes coisas da vida. Pode.

Mas também pode estar na simplicidade de um abraço.

No abraço de um desconhecido.

Em uma foto achada ao acaso, sem explicação.

E pode estar no sorriso da nossa mãe!

 









domingo, 15 de outubro de 2023

O Regresso


Retomando, ou melhor, finalizando a crônica anterior, eu até poderia contar agora como foi a participação da delegação da Bahia no tal Congresso. Por exemplo, que o pessoal dormiu por três dias em aposentos improvisados, debaixo das arquibancadas do Mineirinho, um ginásio de esportes, ou que os banheiros naquele local não tinham portas e, mesmo assim, a direção do Congresso deu conta de organizar tudo certinho, de um modo que as mulheres os usassem primeiro, tanto para a hora do banho como na parte da manhã, e assim tudo foi se arranjando da melhor maneira possível. Uma pitada de boa vontade veio ao nosso encontro, literalmente.

Porém, assim como na ida, as ocorrências mais interessantes aconteceram tendo como cenário o próprio caminho, o trajeto, e foi no retorno pra Salvador que o bicho pegou, literalmente. A ver. Ou ler.

Os atrasos de embarque, normalmente, são mais longos quando envolvem muitas pessoas. Assim, até que todos estivessem dentro do ônibus, acomodados, com todos os seus pertences devidamente acondicionados, levou um bom tempo. O motorista apressava as despedidas com as delegações dos outros estados, alertando sobre a precariedade da estrada e outros contratempos que certamente iriam surgir, o que dizia muito sobre a experiência dele.

Fato é que, no início do regresso, tudo estava tranquilo e calmo. Um cansaço que muitos juravam que jamais ia chegar, bateu de vez. Com isso, o que se via na volta eram poucas pessoas dispostas a conversar, mesmo em pequenos grupos que fosse, criando um burburinho leve, que embalava o corpo, e o vento no rosto, por sua vez, vinha prazeroso, com a janela aberta para o sol e aquela imensidão de plantação de milho. Talvez milho. Vai saber.

Tudo ia muito bem, obrigado. Mas o silêncio e a paz daquela viagem de volta foram quebrados pelo grito estridente de uma senhora, sentada lá atrás.

– Motorista pare o ônibus! Para, por favor. “Meu óculos” caiu pela janela. Ai, meu Deus!

Na mesma hora todo mundo levantou do seu lugar e foi em direção à tal mulher, perguntando a mesmíssima coisa e a coitada sempre dando a mesma resposta. Ninguém entendia nada direito e a pobre só gritava pra parar o ônibus de uma vez, joça!

– Para logo essa caceta – gritou alguém quando se deu um pequeno silêncio.

O motorista até então tido como o vilão da coisa toda, foi logo esclarecendo:

– Ô essa menina, eu já entendi que era pra parar. Mas eu não podia fazer isso em qualquer lugar, no meio da estrada. Primeiro era preciso achar um acostamento, algo seguro, num sabe? Se eu paro ali atrás é perigoso e ainda levo uma bela multa. Agora pronto, parei.

– Fala aí dona coisa, onde “o óculos” caiu? – começou um dos passageiros.

– Ah, foi logo ali, depois daquela curva, acho que deu um vento, sei lá, e “o óculos” lascou da minha testa e saiu pela janela, voando que nem passarinho.

Ficou um certo estranhamento no ar. Ninguém sabia bem o que fazer. Até que um rapaz tentou uma solução:

– Como que a gente faz então, pessoal? Alguém desce comigo pra procurar?

Convidar baiano pra alguma coisa é o troço mais fácil do mundo. Pois desceram bem umas 15 pessoas. Uns pra andar na estrada, uns pra fotografar, e outros só pra fumar mesmo ou esticar as pernas, enquanto esperava. E o que tinha de sobra no congresso, aqui nessa parada faltou: organização. Isso porque tinha doido que ia andando pra frente do ônibus, olhando pro chão, procurando o tal óculos que tinha caído lá atrás, perto da curva. Não fazia sentido aquilo e, na tentativa de explicar o local onde procurar, um sujeito acabou chamando o outro de burro, quase degringolando tudo de vez.

O consenso então foi que esperássemos pela volta dos três, ou quatro, talvez cinco companheiros que iniciaram as buscas e já estavam lá longe, quase chegando na curva. Provavelmente eles iriam achar rápido os óculos e pronto, é viagem que segue.

– Mas eles já passaram daquela curva. E agora sumiram lá atrás, no capinzal da estrada – disse um sujeito, tapando o sol com as mãos à frente dos olhos.

– Ok. Mas vamos esperar por eles mesmo assim.

O tempo passou e nada dos procuradores de óculos. Até que alguém disse que aquilo já estava demorando demais e então anunciou que ia lá na famosa curva, chamar todos de volta. E que se dane “o óculos” da dona coisinha.

– Tá, eu vou com você e a gente ajuda a procurar também – disse um rapaz magrinho.

– Ô jornalista, quer vir com a gente não?

Eu disse vou, sem pensar. E desci as escadas atrás dos dois voluntários.

No caminho a gente foi conversando sobre o perigo de andar nos acostamentos, pois mesmo naquela estrada vazia, qualquer carro que passar pode esbarrar na gente e ali seria morte certa, dada a velocidade dos motoristas, esses loucos. A gente admitiu que sentiu medo e até ria um pro outro, nos dando conta da situação em que estávamos, no meio do nada procurando três, ou quatro, ou talvez cinco companheiros, estes por sua vez à procura de uns óculos do diabo, daquela dona coisa do capeta, uma doida que devia era ficar cega pra aprender a não jogar a porra da cangalha pela porra da janela!

E quanto mais a gente ouvia as nossas próprias frases maldosas, mais a gente ria.

A gente então ouviu um som alto, de um carro que vinha atrás da gente e nos viramos pra olhar. Era um Fusca branco, todo arregaçado, sem farol e todo molengo das rodas. O som alto era sinal de que nem cano de descarga o bicho tinha mais. Chegando perto da gente o carro diminuiu a velocidade e o motorista perguntou com um sonoro sotaque caipira mineiro:

– Boa tarde. O que ocês tão fazendo aí? Cadê o carro enguiçado de ocês?

– A gente está procurando uns amigos que estão andando aí na estrada, mais à frente!

– E porque os amigos estão andando na estrada, sô?

– Eles estão procurando os óculos da dona coisa e a gente veio chamar eles de volta.

– Mas é muita procura nesse trem, não? Ocês entra aqui que eu levo ocês até encontrar eles.

O problema é que a gente, ao entrar no Fusca, percebeu que além do escapamento, não tinha também o banco do carona, ao lado do motorista. No lugar do assento tinha umas latas, garrafas plásticas, panos enrolados, ferramentas agrícolas e duas botas completamente cheias de lama. Claro que não era o caso de a gente reclamar daquela ajuda. Então o jeito foi entrar de qualquer modo e dois acabaram sentando no banco de trás e outro, no caso, eu, fiquei acocorado ao lado da porta, segurando na maçaneta.

Deu uns dois minutos de carro e logo vimos de longe os amigos na beira da estrada. Aí falamos pro motorista, o mineirinho:

– Olha eles lá na frente. São eles ali perto daquela cerca.

– São eles ali? Então tá bom. Vou dar umas buzinadas pra chamar eles.

Estranhamente, para nossa total surpresa, quando o Fusca foi diminuindo a velocidade, encostando fora da estrada e buzinando pra chamar os rapazes, a gente percebeu que eles saíram a correr como loucos pra dentro da plantação. Eram cinco malucos em disparada pra dentro do mato e a gente gritando pra eles pararem, numa confusão dos diabos que durou um bom tempo.

– Uai... Eles não são amigos? E estão correndo de ocês, porquê?

Por muito custo a gente assobiou, fez sinal, gritamos que estávamos no mesmo ônibus, o que ia pra Salvador, e eles foram voltando aos poucos. Esbaforidos de tanto correr e assustados pela aproximação do Fusca, mal conseguiam falar:

– Pô véio, a gente achou que vocês iam atirar na gente. Achamos que eram bandidos de estrada, pô.

– Mas como bandidos? Vocês são malucos.

– Ah, um carro vem devagar, buzinando, chamando a gente, e dentro vimos uns caras agachados. Na hora pensamos: vem bala aí, vamos correr pro mato rapaziada! – disse o coitado sem fôlego e a gente rindo à vontade dele.

Na volta pro ônibus ainda fizemos muitas piadas, cada um tentando dizer como ia contar o episódio do matagal. E a cada versão mais exagerada que a outra, mais a gente ria. Um deles ainda falou que o mineirinho era o que tinha mais cara de bandido, com aquele cavanhaque safado. E vinham mais risadas.

Quando finalmente chegamos no ônibus, a decisão já estava tomada: a gente ia embora de qualquer jeito, direto, e nada de perder mais tempo. Quem quiser ficar com a janela aberta que tome cuidado com os óculos ou lá o que for, mas a gente não vai parar mais pra nada. Agora é pé na estrada!

Ainda lembro que, durante o retorno, quando se ouvia alguma gargalhada num grupinho, eu olhava pra trás só pra conferir, mas já sabia que era alguém recontando a saga da corrida do mato adentro, ou a epopeia do Fusca assassino, como também ficou conhecido o ocorrido.

Depois da parada pro jantar, uma das meninas, coordenadora do evento e diretora do Sindicato, veio chamar o pessoal do grupo da organização.

– Cara, vocês não vão acreditar no que eu vou contar. Eu fui conversar com a dona coisa, a que perdeu os óculos. Bem, eu fui mais pra me solidarizar com ela pela perda, pra consolar um pouco. Dizer que os óculos fazem falta, ainda mais com certa idade, pra ler, trabalhar etc. Aí, com todo o cuidado, perguntei qual era o grau dela, que a lente devia ser muito cara, e se ela afinal tinha condições de mandar fazer um novo, né?

– Ahã, claro, a gente pode até dar uma ajuda. Mas, e aí, qual é o grau?

– Simplesmente ela disse que “o óculos” não tinha grau nenhum. Que era “um óculos” de sol, sem grau, que ela comprou no camelô, em Feira de Santana.

– Vagabunda!

– Caceta, e a gente foi que nem besta procurar a porra dos óculos... de sol... Não acredito!

– É uma “fila de uma égua”!

– Que dona coisinha mais escrota!

– Porque ela não disse antes, painho?

– Pô, que cachorrada da porra!

A pausa de indignação foi se estendendo até que a coordenadora retomou a palavra, em tom conciliador. Quase sussurrando ela recomeçou:

– Então, prestem atenção aqui. Eu tive uma ideia. Nós vamos fazer o seguinte: vamos chamar todo mundo, em segredo. Aí, vamos todos subir no ônibus, correndo, vamos fechar a porta rápido e que se dane tudo. Vamos largar essa véia cega do caraio aí na estrada pra ela aprender a não jogar nunca mais “o óculos” pra fora.

Depois de um tempo olhando pra gente e segurando a fisionomia séria, ela deu um grito e soltou uma sonora risada:

– Hahaha... peguei vocês. Bora pra casa, moçada!

Claro, depois que a gente viu que ela estava brincando, tirando sarro da cara de todo mundo, acompanhamos com gosto a gargalhada dela e partimos todos pro ônibus. Ia um empurrando o outro e repetindo a pegadinha da diretora.

E foi assim até a chegada em Salvador!




sábado, 30 de setembro de 2023

O Congresso


No início dos anos 1990 eu trabalhava na área de comunicação de um sindicato, em Salvador. Era um sindicato de servidores públicos, cujas tarefas normais e ao mesmo tempo complexas se resumiam em manter a base minimamente informada. Era esse o mato-sem-cachorro com que eu travava a minha labuta cotidiana.

Se alguém perguntar sobre como é hoje em dia, eu direi, categoricamente, que essa é uma luta que jamais terá fim. Ou seja, os trabalhadores continuam dispersos, infelizmente, e a comunicação sindical correndo contra o tempo.

Então, durante o ano de 1993, todo o trabalho daquele sindicato foi mobilizado em função de um Congresso que ia ter em Belo Horizonte, Minas Gerais, no final de novembro. Foi um ano frenético, ou “norótico”, como dizíamos nas nossas reuniões. Mas até que num prazo razoável a gente já tinha providenciado não só as assembleias para a escolha dos participantes, como também todo o suporte para a nossa participação, como aluguel de ônibus, acomodação, refeições, materiais de uso e consumo durante o evento, aí incluídos desde os materiais de escritório, até as caixas de som e microfone, para as atividades extras e paralelas, tipo rodas de viola e cantorias.

Já na saída do ônibus, no Campo Grande, perto do Teatro Castro Alves, tivemos um atraso considerável. De repente alguém, já dentro do ônibus, gritou “roubaram a minha câmera”. Aquilo foi um furdunço. Quem estava dentro da condução saiu pra calçada e quem estava na calçada entrou pra ajudar. Só que todo mundo se deslocando, falando ao mesmo tempo e, enfim, nada de câmera. A dona, em estado de choque, por muito custo aceitou ir na delegacia pra fazer o B.O. devido.

Antes não tivesse ido. Na maior cara dura, quando ouviu de uma das testemunhas que um rapaz foi visto andando pra lá e pra cá, dentro do veículo, e que ele tinha um “olhinho puxado do capeta”, o delegado, na hora soltou um grito:

– Minha Santa Edwiges. Já sei. É o gringo, o chileno. O nome dele é Raul, mas todo mundo chama ele de gringo. Ele rouba tudo que pode ser roubado ali no Campo Grande, minha senhora. Tem uma mão leve da porra e fica só esperando a oportunidade. Essa figura é famosa aqui.

– Mas porque vocês não prendem esse cara? Ele fica ali, roubando, todo mundo sabe e o deixa solto?

– Aqui, senhora, repare, a gente já prendeu esse gringo umas 20 vezes. Só que aí ele fica um tempo sumido e logo volta a agir. Como o furto é pouco, de pouco valor, logo ele está solto de novo. Vou dizer pra senhora uma coisa: isso cansa, viu?

Cansada de verdade ficou a pobre da moça sem a câmera que ainda teve de ouvir aquela barbaridade sobre o prende e solta bandido, o que não ajudaria em nada a recuperar o seu equipamento.

Finalmente, depois desse contratempo estrambótico, o ônibus ganhou a estrada. Já era quase noite e a maioria caiu de sono, só acordando na hora do jantar, em uma parada que tinha como maior característica o frio e a neblina, duas coisas definitivamente desconhecidas para esses baianos a caminho das Minas Gerais. Foi um tal de reclamar da friagem que só mesmo uma sopa quentinha deu jeito de acalmar o espírito da galera.

Na manhã seguinte – e aqui cabe um parêntesis oportuno, pra comentar como pode esse povo acordar tão animado, com a rotação em 220 volts, logo cedo. Uma disposição que deu até tristeza naqueles que queriam uns minutinhos a mais de sono, enquanto o sol dava as caras timidamente, quem sabe dormitando também.

Mas eu dizia que na manhã seguinte, mal saímos da parada para o café, o pessoal já estava a todo vapor. Impressionante a cantoria que se enfileirava e a quantidade de laranja que o pessoal consumia, espremendo a fruta diretamente na boca e depois tomando um líquido translúcido que eu, ingenuamente, pensei que era água. Com quase todos de pé, cambaleando nas curvas, que eram muitas, aquilo mais parecia uma dança a mover todos na mesma direção, ao mesmo tempo, tudo sincronizado.

Pensando com os meus botões, eu imaginava a origem do termo “comer água”, que se usa pra referir ao velho e conhecido "tomar um porre". Era exatamente isso que eu estava vendo: comiam a fruta e junto já ia a água. Comer água, pois. Tá certíssimo. Baiano sabe das coisas.

A um certo momento da tarde, não sei bem dizer a hora, os ânimos ficaram mais tranquilos. Até porque o almoço foi bem forrado e, embora tenha havido uma sutil reclamação de que faltava um dendê naquele ensopadinho de carne, todo mundo caiu de boca no estranho guisado.

Ocorre que a tranquilidade durou pouco, como é fácil prever, dado o contexto dessa viagem que aqui acompanhamos. No meio de um quase silêncio, em uma paisagem quase bucólica, varando uma estrada quase segura, de repente se levanta um sujeito com a cara quase do Gonzaguinha e ganha o corredor do ônibus, com um chapéu Lampião sendo agitado nas mãos.

Ele ainda nem bem tinha anunciado o seu número e já arrebatava o público com aplausos efusivos e o coro de Conselheiro, Conselheiro... Então o tal sujeito vestiu uma túnica de pano de chita, tomou lugar no centro do ônibus e com gestos e entonação teatrais declamou o que pra mim era uma espécie de literatura de Cordel, contando a saga de Canudos e os feitos de Antônio Conselheiro. Tudo rimado, tudo metrificado e os versos entoados faziam as suas evoluções cênicas, respeitando cada pausa dramática com precisão.

A minha má vontade em ouvir aquele arremedo de Gonzaguinha foi dando lugar a uma terna admiração. A memória daquele artista recitando tudo aquilo me cativou. A força daquela história, as rimas, as palavras encantadas, os aplausos no tempo correto, marcando o compasso daqueles versos, tudo aquilo era o retrato mais fiel e legítimo da cultura brasileira, da cultura dos nossos antepassados, da nossa ancestralidade negra e indígena.

Quando terminou a sua ode, o rapaz abriu a túnica, estendeu os braços na nossa direção e deixou à mostra um desenho em uma camiseta. Era o próprio Antônio Conselheiro, ali, entre anjos, corações e pássaros. E os aplausos foram tantos. E as lágrimas foram muitas.

Entendi naquela tarde que somos todos filhos dessa rica e indelével Cultura.

Viva esse povo lindo do Nordeste.

 

 

(Esta crônica segue na próxima postagem)




sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A Reparação


O meu amigo José, que além de paisagista é cinéfilo, uma vez me disse que a sua lista dos 10 melhores filmes de todos os tempos tinha uns 80 títulos. Aquilo me abriu portas e desde então eu não me preocupo em fazer caber em uma singela dezena os meus 10 melhores, seja lá qual for a categoria.

Eu estava no Aeroporto Santos Dumont quando avistei a minha cantora lírica favorita em uma cafeteria, se preparando para o embarque. Olívia Byington figura até hoje, com louvor, entre as minhas 10 melhores cantoras de todos os tempos. Na frente da loja eu fiquei alguns minutos matutando como é que se pede autógrafo, pois aquele seria o meu primeiro, o que, casualmente, acabou sendo o único em toda a vida. Peguei uma caneta, a minha agenda, abri na data presente, suspirei e fui.

Ela foi muito gentil ao perguntar o meu nome e depois dando o autógrafo, e ainda respondeu a uma ou outra pergunta minha sobre a turnê que ela estava fazendo, que percorria o país com grande sucesso, fruto do disco recentemente lançado e que homenageava Cartola, Tom Jobim e George Gershwin, entre outros.

As cantoras líricas não são muito tietadas nesse Brasil. Eu diria quase nada. E talvez por isso tenha havido um pequeno incômodo durante o nosso célere diálogo, devido possivelmente à relutância mútua em dar tratamento aos procedimentos que seriam normais aos, digamos, “popstars”. Assim, não teve foto, tampouco chiliques ou desmaios, pois que ao final eu apenas agradeci, desejei boa sorte para o restante da turnê e jurei pra mim mesmo que nunca mais esqueceria aquele sorriso.

Vale dizer que alguns acontecimentos vividos possuem uma característica peculiar de ir ganhando corpo conforme o tempo passa. Eu rememorava aquele encontro, primeiro com receio de esquecer os pormenores, os detalhes, mas também com o objetivo de poder contar aos amigos, músicos e cinéfilos, o grande sortudo que eu fui por ter tido aquela experiência como se fosse um prêmio, uma dádiva, do tipo que a vida nos oferece somente de vez em quando.

Conforme eu contava o episódio para alguém, ia acrescentando minúcias e também outras informações que pudessem ilustrar aquele cenário do aeroporto. Então eu descrevia o saguão, as lojas, as pinturas dos painéis e, de repente uma ficha caiu. Caiu quando um amigo perguntou:

– Ela estava sozinha? Tinha algum empresário acompanhando? Alguém da banda?

Eu fiquei uns minutos calado, pensando, e logo senti o maior dos arrependimentos. Sim, ela estava na companhia de alguém. E era simplesmente o pianista João Carlos Assis Brasil, que a acompanhava no disco e também nos shows. João é para mim um dos 10 melhores pianistas clássicos e de jazz que o país já teve. No mesmo momento eu me dei conta da desfeita que eu tinha cometido, do meu fora, uma gafe temperada com pura falta de educação. E na presença da Olivia ainda por cima. Eu me senti o pior dos fãs, o mais embusteiro dos admiradores. Um fiasco.

Duvidando da própria sanidade, eu me perguntava como eu não percebi o homem ali ao lado da cantora, ou como eu não o reconheci de pronto, uma vez que a figura dos dois vinha amalgamada na capa do disco que eu tinha, um ao lado do outro. Não era possível que um encontro daqueles ia se transformar num grande remorso, uma coisa que eu não podia consertar, pois que eu não sabia o que fazer para corrigir o estrago.

Eu passei muito tempo com aquela sensação ruim, de ter feito mal a um cara a quem eu admirava demais. Eu estava triste, me martirizando pelo meu comportamento. Culpa mesmo. Depois pensei em como o pianista deve ter se sentido, ao me ver pedir o autógrafo da cantora e nem o cumprimentar?

Bem, os anos passaram. Ou como diz Chico Buarque: passaram muitos verões, outros virão. E no dia de Natal de um ano qualquer eu entrei no metrô. Estava muito vazio, era de manhã, a cidade mal tinha acordado naquele dia festivo. Dava pra ver vários vagões à frente e não se via quase ninguém. Quase. Lá no segundo módulo, sentado na janela com as mãos unidas entre os joelhos, uma pessoa olhava em redor, ora fitando a janela quando passava na estação, ora se fixando no corredor, talvez apreciando, como eu, toda aquela vastidão de espaço vazio.

Era ele. Simplesmente o João Carlos. Um misto de medo e de agradecimento a Deus me veio na mesma hora. Medo porque eu não sabia o que falar, nem como conduzir a conversa até o meu pedido de desculpas, cujo motivo, certamente, ele nem lembraria, se é que soube da minha intenção alguma vez. Mas eu agradecia a Deus por me dar aquela oportunidade de reparação. Muitas pessoas passam a vida toda sem ter uma chance de se redimir, de perdoar alguém ou se perdoar.

Mas cadê coragem? Minha dúvida era atrapalhar o sossego do músico. E como puxar conversa pra, no final, pedir perdão? Era muita coisa pra contar antes. Ia ser um saco pra ele. E eu não tinha qualquer explicação para o fato de não ter falado com ele no aeroporto. Aquilo foi uma burrada e a ficha só caiu muito depois, como já sabemos.

As estações iam passando e eu, com medo que ele descesse na próxima, resolvi agir. Me aproximei, sentei no banco que fazia um L com o dele e iniciei:

– Bom dia. O senhor é o pianista João Carlos – disse sem perguntar. Eu assisti o seu show com a Olívia e tenho o CD também. Muito bom.

– Bom dia. Exato. Ela é uma das grandes. Com G maiúsculo.

– Nesse horário é ótimo o metrô.

– Sim, eu pouco uso, mas hoje não tive carona e aqui estou.

– Pouca gente tem compromisso na manhã de Natal. Por isso esse espaço todo.

– Verdade. Eu estou indo almoçar com a minha mãe. Aí tem essa hora marcada e acordar cedo é necessário.

– Eu também estou indo pra casa da minha mãe. Vou almoçar lá também.

O meu nervosismo chegou sem avisar, ao fim dessas palavras. De repente eu achei que ele ia descer, que estava olhando o nome da Estação que passava e pensei em pedir perdão direto. Pedir mesmo que ele não soubesse a razão ou quem era o tal sujeito estranho a ser perdoado. Mas no instante seguinte eu desisti da ideia, esperando que ele não tivesse percebido o meu impulso de falar.

Ainda hesitante, finalmente as palavras foram saindo. E eu só me concentrei em dizer o quanto eu o admirava como músico, pianista e arranjador, além de parceiro honorário da minha querida Olívia. De vez em quando ele até soltava um risinho de lado, enquanto eu ia falando tudo que sabia sobre a sua carreira e os projetos que ele já tinha realizado.

Contei que tinha lido uma reportagem sobre um programa de música que ele ia comandar na tevê e depois falei do disco que ele tinha lançado fazia pouco tempo, com músicas do irmão gêmeo que tinha falecido recentemente nos Estados Unidos. A reportagem contava que a mãe, Elba, foi arrumar o apartamento e achou um baú cheio de músicas. Aí ela chamou o filho pianista pra ver tudo e logo veio a ideia de fazer o CD. “Muita qualidade naquelas partituras. Tinha até uma dedicada à nossa mãe”, ele me confidenciou a certa altura.

Não sei bem quanto tempo durou aquela conversa. Mas quero crer que, ao final, ele possa ter me identificado como um fã seu ou talvez alguém que o reconhecia e admirava o seu talento.

Talvez o encontro tenha sido agradável pra ele, afinal, ali sozinho, não é comum ser surpreendido por um admirador, numa manhã de Natal, em um metrô deserto no Rio de Janeiro, a caminho da casa da mãe. E talvez isso possa ter feito algum bem pra ele, como fez pra mim.

Ao mesmo tempo em que aquela foi uma reparação que eu tinha como dívida, mesmo sem ele saber, pra mim foi um alívio, uma retratação que se consumou mesmo sem um perdão explícito.

A única coisa que eu me arrependo desse dia foi, definitivamente, não ter lhe pedido um autógrafo.

Falha minha. De novo.

Ia fechar o ciclo: os dois únicos autógrafos. Da dupla!

Acho que eu não sou bom com autógrafos.

Mas ninguém é perfeito!

É o que dizem!

 

 

 

O pianista João Carlos Assis Brasil morreu no dia 6 de setembro de 2021, aos 76 anos, no Rio de Janeiro.