quinta-feira, 31 de outubro de 2024

São Benedito

 

O santo negro mais famoso da igreja católica era o santo preferido do meu pai. Desde sempre, ele tinha uma oficina de ótica em casa, onde cortava e lapidava as lentes e depois montava as armações. Nessa época ele trabalhava para uma grande empresa que vendia esses óculos para as grandes lojas.

Me lembro que, quando era possível, eu também ajudava em alguma fase dessa, digamos, linha de montagem, instalada em uma espécie de barracão, todo de madeira, que ficava nos fundos da casa do meu avô, onde a gente morava.

São Benedito sempre esteve no alto da parede principal dessa oficina, com uma luzinha verde a iluminar a sua imagem emoldurada, onde se via o Santo com o menino Jesus nos braços. Quando todas as luzes da oficina eram desligadas e os trabalhos do dia encerrados, a única luz que permanecia acesa era a do São Benedito, ou “O Negão”, que era como meu pai o chamava com a maior devoção e fé.

Ele abria e fechava o dia de trabalho pedindo a proteção do santo. Era assim todos os dias. Ainda mais quando tinha algum trabalho grande, cuja jornada ia ser difícil e longa, aí mesmo é que meu pai chamava pelo Negão várias vezes ao dia, invariavelmente olhando para o quadro e estendendo-lhe as mãos durante a jornada. Muitos anos mais tarde, a ótica que meu pai abriu e que funcionou por cerca de 10 anos, ali mesmo no bairro de Ramos, recebeu o nome de Ótica São Benedito. A gente já sabia que seria esse o nome da loja, mas ver o nome escrito lá no alto em letras enormes fazia até a gente se arrepiar.

Algum tempo depois, já no início dos anos 2000, eu fui morar em Florianópolis,. Uma certa tarde caminhando perto da catedral, conheci o Vitor, um jovem rapaz, que tocava viola nas ruas, lindamente, para conseguir uma graninha. Eu sempre parava pra ouvi-lo e quando era possível ele dar uma pausa a gente conversava rapidamente. Eu elogiava o seu desempenho, as músicas escolhidas e depois de ouvir mais um pouco, retomava o meu caminho.

Uma vez ele me contou como tudo começou. Morando em uma comunidade das mais pobres da cidade, um amigo o avisou de um curso de música da prefeitura que era grátis e, o melhor de tudo, não precisava nem ter instrumento. Ele não teve dúvida e foi lá no local fazer a inscrição. Ao preencher o formulário ele se deparou com um item que pedia pra indicar o instrumento que queria ter as aulas. Foi lendo um a um e percebeu que não conhecia a maioria deles. Tinha fagote, trompa, pífano! Depois leu alguns nomes que ele até conhecia, mas que não o interessava em nada: violino, violoncelo e contrabaixo.

Ele mesmo contou:

– Eu já estava desistindo, quando vi ali quase no final da lista, escrito: “viola”. Pensei, pô viola já é mais popular, dá pra fazer um som com os amigos e tal. Marquei lá a tal da viola. Só que eu pensei que era violão. Aí quando chegou na primeira aula, quando o professor me deu a viola, que pra mim parecia um tipo de violino, eu fiquei branco de vergonha. Mas segurei a onda e disse pra mim mesmo: vou fazer essa primeira aula e depois caio fora daqui.

– E aí, o que veio depois? – perguntei adivinhando a resposta.

– Aí eu fiz aquela primeira aula, me apaixonei pelo som da viola, pelo arco, e nunca mais larguei. Ganhei até o instrumento ao final do curso. Aquele som, puro e melodioso, saindo dali das cordas, pertinho do ouvido da gente! É muito bom tocar a viola, meu amigo.

Eu lembro que ri pelos dois motivos, quando ele acabou a narrativa. Pela aflição dele em receber a viola quando esperava por um violão e, depois, pela satisfação e pelo amor dele logo ao primeiro som, quando abraçou o instrumento perto do ouvido. Tem coisas que a gente ouve alguém contar e que é possível ver as imagens claramente, tal como aconteceu.

Um dia o Vitor custou a me cumprimentar. Eu fiquei ali perto, como sempre fazia e nada. Depois de uma pausa ele me chamou pra perto. Pediu desculpas por não ter me reconhecido de pronto e disse que os seus óculos haviam quebrado, e que ele estava com dificuldades de reconhecer as pessoas e, inclusive, não estava nem podendo ler as partituras.

Na mesma hora eu marquei com ele que, no dia seguinte, deveria me trazer a receita, com o exame de vista. Naquela mesma noite, contando a história do Vitor, meu pai disse pra eu levar a receita pra ele assim que fosse ao Rio e ele ia dar de presente ao músico os óculos novinhos. No início da semana seguinte estava eu chegando na casa do meu pai, com a receita do Vitor na palma da mão.

Meu pai a examinou de cima a baixo, me perguntou mais ou menos como eram os óculos antigos dele e na manhã seguinte fomos ao Centro da cidade comprar as lentes e a armação. No caminho ele ia explicando que ainda tinha a inscrição da loja, da ótica, e que mesmo fechada ele ainda tinha o CNPJ dela como válido e assim podia comprar direto do fornecedor.

Aquela compra pro Vitor foi uma viagem no tempo pra mim. A gente revisitou lugares que ainda estavam na minha memória, e nos quais eu mesmo já tinha ido várias vezes pra comprar insumos para a ótica. Lentes, armações, plaquetas, ponteiras, hastes, ferramentas diversas, diamante para cortar as lentes, tudo tinha um lugar específico onde comprar e eu trazia o endereço de cada um, escrito num papel, inclusive com a dica do ônibus que eu devia pegar e o nome da pessoa que eu deveria procurar.

– Filho, e se você tiver dúvida de alguma coisa, entrega esse cartão da ótica pra pessoa e diz pra ela que você é filho do Adelino. Faz isso e vai dar tudo certo.

E sempre deu mesmo, tudo certo.

Nesse dia andamos juntos, pai e filho, pelo Largo de São Francisco, pela Praça Tiradentes, a Rua da Alfândega, Rua do Ouvidor e eu ia lembrando dos lugares que já tinha ido em outras épocas, à serviço da Ótica São Benedito.

Levei pra Floripa os óculos do Vitor e no primeiro dia fui entregar pra ele na frente da Catedral. Ele mal conseguia agradecer, pois só ria, pondo e tirando a armação do rosto, enquanto balbuciava alguma coisa sobre o presente ser tão essencial pra ele.

De noite eu liguei pro meu pai pra contar o sucesso da nossa empreitada. Enquanto a gente falava mandei uma foto do Vitor de óculos novos e com a viola em punho, pro celular da minha mãe, já que o dele era velhinho e nesse tempo não era todo celular que tinha como ver fotos.

Eu disse que o rapaz tinha adorado o presente, que agradeceu demais, que tinha ficado ótimo no rosto dele e que ele queria mandar um grande abraço pro meu pai. Ele então me respondeu:

– Não tem nada disso de me agradecer, não. Agradeça ao Negão. Ao grande São Benedito.

Falou estas palavras e o telefone ficou mudo de repente. Eu chamava pai, pai? E nada. Já estava ficando preocupado, quando minha mãe surgiu dizendo alô.

– Oi, mãe. Meu pai está bem?

– Está tudo bem, filho. É que assim que ele viu a foto do menino com os óculos, começou a chorar e não para mais. Mas tá tudo bem. Acho que é só emoção mesmo. Você sabe como é o seu pai, né?

 

 

Em todas as crônicas que eu menciono o meu pai, uma frase eu sempre uso para descrever o meu mais profundo agradecimento a Deus por ter sido filho dele. A frase é: Meu pai nunca me ensinou nada, mas eu aprendi muito com ele.

Eu sou o filho do Adelino!

 


sábado, 12 de outubro de 2024

Zildinha

 

A primeira vez que eu a vi, ela estava sentada em uma poltrona branca, na sala da casa da Ana. Vestia um terninho cinza com linhas fininhas brancas e no pescoço uma echarpe muito chique, combinando com o terno. Assim que eu entrei e fui acenando e abraçando os amigos, notei que havia quase que uma fila para cumprimentar aquela elegante senhora, ali no canto da sala.

De longe eu percebia que as pessoas mudavam completamente de fisionomia assim que lhe estendiam as mãos e trocavam as primeiras palavras. Alguns a beijavam no rosto, outros nas mãos, e ela devolvia toda a cordialidade com um olhar único de quem te acolhe sem bem te conhecer.

De imediato eu senti saudades da minha mãe, da minha avó e dos meus tempos de infância, quem sabe estreitando uma realidade na qual eu também seria seu filho ou neto. E ali, de longe, esperando uma vaga naquela fila de cumprimentos eu já era, assim como todos, um súdito daquele semblante fraterno e sublime.

Maior ainda foi a minha surpresa ao vivenciar o sentimento que cada um guardou em si, quando foi a minha vez de lhe estender as mãos.

– Dona Zildinha, boa noite. Tudo bem com a senhora?

Ela me olhou fixamente, pôs as mãos suaves na minha barba, fitou os meus cabelos nos dois lados do rosto e com a minha mão entre as suas, disse calmamente:

– Quem é esse moço bonito?

– Sou um amigo do seu filho Ricardo.

– É o Anderson, amigo lá do museu, mamãe.

– Ah, que bonito ele. Lá do museu. Agora sei.

Toda essa cena jamais saiu da minha lembrança. Detalhadamente, sou capaz de sentir e ouvir de novo cada palavra daquela amiga e querida senhora. E todas as vezes que a gente se encontrava eu me preparava para reviver aquela primeira vez, sabendo que talvez para ela, inexoravelmente, tudo aquilo fosse realmente uma primeira vez. Em sua memória a novidade de certos acontecimentos era algo sempre renovável, e certamente era, também, uma nova e renovada chance para ela ser igualmente acolhedora e gentil com cada um de nós, como se a vida fosse eternamente uma sucessão de primeiros encontros.

Penso que essa qualidade de ser especial para tanta gente, coisa que eu fui testemunhando ao longo do convívio, fez da nossa Zildinha alguém assim tão querida e tão Zildinha ao mesmo tempo.

Na fase de criança, recebeu de um dos irmãos o apelido de truquista. Contam que a menina, pra lá de esperta, era faceira em produzir estripulias as mais variadas e depois, diante dos pais, com todo o seu talento, apenas dizia um furtivo "não fui eu, mãe". E nessa hora o irmão Hélio corrigia: "foi ela sim, é uma truquista". Esse era o seu truque preferido! Posso até imaginar aquele olhar piedoso da menina se transmutando em soslaio intrépido para simplesmente escapar dos castigos que certamente a ela se direcionavam. Puro talento dela, disseram.

Zildinha teve sete filhos. A contar pelo outro talento elogioso que desenvolveu, eles devem ter tido muita sorte na vida. A mãe era exímia cozinheira e uma doceira de mão cheia. Tivesse eu a mesma sorte e teria tido a graça de a ter conhecido bem antes, quando ainda exibia esses doces dotes. Digo isso principalmente com relação aos doces, cujos amores e sabores sempre estiveram mais próximos dos meus gostos pessoais.

Lembrei agora que, na minha primeira infância, minha mãe me chamava e, diante das amigas, me perguntava qual era o meu prato preferido. Eu mal falava, mas já sabia responder com firmeza: quindim. E todos riam juntos.

Se por um lado eu lamento não ter chegado a tempo de ver a fase doceira da querida Zildinha, por outro sou agradecido por tê-la conhecido em sua fase artística. Ver os seus trabalhos, suas pinturas e desenhos, que ela se orgulhava em mostrar um a um, era muito bom. Ela andava pela casa com a gente e ia mostrando todos os que ficavam expostos nas paredes, nas luminárias e no abajur. Depois ia na gaveta e trazia os que eram guardados como obras de arte que são, e ia explicando os detalhes, repetindo as frases e nos conduzindo ao mundo dela.

Quando soube da partida da Zildinha, de manhã, bem cedinho, na mesma hora me veio a imagem do seu mirar singelo, que nos olhava firme. Depois, as lembranças do seu sorriso e do semblante de satisfação que mostrou durante a exposição das suas obras no Museu Victor Meirelles, me impediram de ficar triste. Tristeza não combina com Zildinha.

É que ela parte, mas não pra longe. Talvez parta pra dentro. Pra dentro de nós. Talvez a sua lembrança é que se parta, ou reparta, pra ficar um pouco com cada um de nós. Certo é que cada um vai guardar em um lugar especial uma cena, um olhar, um diálogo, um desenho dela, uma foto e, enfim, uma certa música que ela adorava.

Pois como não cantarolar “índia teus cabelos nos ombros caídos” e não sorrir lembrando da voz dela? Quando ela não só cantava, afinadíssima, mas também dançava e seguia bailando sem esquecer nenhum verso da canção. Pois, definitivamente, a tristeza não combina mesmo nada com a nossa Zildinha.

Certamente, nós, que ficamos, estaremos juntando todas essas lembranças, e são muitas, de uma mulher especial, truquista, doceira e artista, que deixou por aqui o leve perfume das mãos que oferecem rosas, das mãos que sabem ser generosas.

E então, quando estivermos leves de saudades, lembraremos mais uma vez do seu olhar singelo, cheio de carinho, e da generosidade que ela sempre soube nos oferecer.

Zildinha podia não lembrar o nosso nome ou quem a gente era, mas nunca esquecia de ser doce e gentil com cada um de nós. Isso ela jamais esqueceu. E nós jamais a esqueceremos.

Que a sua colhida seja de Paz.

Assim seja!

 

 

Ao nosso igualmente querido Ricardo, um grande e fraterno abraço e toda a nossa solidariedade.

Quem cuida de um, cuida do mundo inteiro.

 

 

 

terça-feira, 24 de setembro de 2024

O Retrato

 

A campainha tocou e ele se deu conta de que estava nervoso com aquele reencontro. Havia cerca de um ano que o casal estava separado. Não houve briga, discussão, nada. Nem algo que se possa apontar como grande motivo para tudo ter acontecido da forma como aconteceu. Quando perguntado pelos amigos mais próximos, todos pegos de surpresa, diga-se, nenhum dos dois era capaz de listar qualquer causa satisfatória. “Isso não está indo a lugar algum”, diziam, segurando um suspiro na garganta.

De repente, num final de tarde, tomaram juntos a decisão e ela, já no dia seguinte, fechou silenciosamente a porta do quarto, desceu as escadas até a cozinha e se foi, deixando o chaveiro na mesa da sala. Ao lado das chaves, o retrato do Tarantino, com um osso na boca, parecia tentar entender o que se passava.

Reconhecendo o caminho, os móveis e a velha janela aberta para a palmeira da praça, ela foi entrando. Depois se sentou, pondo a bolsa no chão.

– Então, como está a vida?

– Na mesma. Muito trabalho e pouco dinheiro. E você?

– Minha mãe está um pouco doente.

– Grave?

– Ainda não sabemos. O Tarantino?

– Na casa de um amigo. O filho ficou louco por ele. Aí deixei ficar lá um tempo. Ele anda meio triste nessa casa.

Enquanto ele pegava um copo d’água e oferecia à visita, passou pelo corredor e trouxe uma sacola grande.

– Ah, as fotos...

– Sim, as fotos. Tenho olhado muito elas. Desde o dia que você falou que queria vir buscar algumas.

– Tem muita coisa aí. Dá pra ver que tá abarrotada.

Em pouco tempo o chão e a mesa ficaram cheios de fotos. De todos os tamanhos, lugares, gente conhecida e outras nem tanto. Algumas esmaecidas e outras avermelhadas pelo tempo, mas eram fotos de toda uma vida, ou melhor, de duas. Eles iam olhando, separando as que ela queria levar, comentando os vestidos, os destinos, os caminhos, tal qual a Marisa canta.

– Nossa, tô vendo que aqui tem muito mais foto minha do que sua.

– Mas é claro, a pessoa é linda desse jeito, tem que ter muito mais foto sua. Olha essa aqui, com esse vestido? Amarelo e rosa. Todo florido. E ainda por cima de tênis. Olha isso!?

Foi ouvir essa frase e o choro dela veio como um flúmen, sem força para ser contido. Ele sentou no chão, ao lado da sua cadeira e ela foi se recompondo. Em seguida disse que lembrava nitidamente daquele vestido, do dia, do lugar, de tudo. Ele disse “eu também”, mas falou tão baixinho que ela nem ouviu.

– Não vou conseguir ficar longe desses retratos.

– Nem eu – disse ele, agora com voz firme.

– O que a gente faz da nossa vida?

– O que a gente fez da nossa vida!

– Ficar sem você me fez ver que sozinha eu não vou a lugar algum.

– E a gente usou essa frase pra decidir por caminhos separados.

– Se eu não vou a lugar algum, então que seja com você.

Ainda segurando o retrato dela, de vestido florido com o tênis, eles se abraçaram longamente. Depois de um bom tempo, aos poucos, foram enxugando os olhos.

– Como foi em Paris?

– Faltou você! E como foi em Buenos Aires?

– Faltou você também.

– Vou buscar as minhas coisas. De tardinha estou de volta.

– Vou buscar o Tarantino. Ele está morrendo de saudades.

E os dois, juntos, desceram as escadas.



sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Itajara

 

Uma das minhas funções, logo que eu chegava ao trabalho, era ler os jornais do dia e recortar os assuntos de interesse da empresa, para que circulasse no departamento. Inevitavelmente, eu também mandava junto as notícias de cultura, agenda de teatro e shows de música, além de alguns destaques da programação de cinema.

Depois que eu fazia esses recortes os jornais ficavam liberados e aí todo mundo lia, na medida em que o trabalho permitisse. No almoço, principalmente, sempre vinha alguém pedir uma parte específica pra dar uma olhada. Os cadernos de novelas e esportes eram os mais solicitados.

No meu departamento éramos dois datilógrafos – sim, essa profissão existia –, três assistentes administrativos e dois contínuos, que eram os responsáveis pelo leva e traz de processos entre todos os setores da casa. Na sala ao lado da nossa ficavam as duas assistentes de gabinete. Eram elas que atendiam o diretor, os demais chefes de seção e normalmente nos passavam os trabalhos. A hierarquia rezava que as assistentes eram as nossas chefes imediatas, logo abaixo do diretor do departamento.

Nos dias em que o diretor viajava, a gente quase não tinha trabalho, pois não tinha a circulação dos processos, nem conferência de contratos de cooperação técnica, tarefa que mais nos tomava tempo e na qual as calculadoras de rolo de papel eram as mais exigidas. Ainda consigo me lembrar do barulho ritmado das bobinas sendo expelidas pela impressão da máquina e das teclas sendo acionadas a cada cálculo processual.

Itajara era o nome do puro sangue mais famoso do Jockey Club Brasileiro na década de 1980. Termos como “fenômeno”, “lenda do turfe nacional”, “tríplice coroado” e “invicto” eram comumente associados ao cavalo multicampeão. Suas façanhas arrastavam multidões ao Hipódromo da Gávea, desde a sua estreia até o dia derradeiro em que deixou as pistas invicto e completamente laureado.

Os jornais, nem é preciso dizer, semanas após semanas traziam verdadeiras epopeias sobre a trajetória do animal, o seu haras de origem e também os jóqueis que tiveram o privilégio de montar aquele garanhão imbatível.

No nosso departamento a gente acompanhava as suas corridas, as vitórias e as histórias dos apostadores, cada dia mais felizes com o seu desempenho. Parecia que a gente, mesmo de longe, e sem conhecer nada de turfe e apostas, era capaz de analisar os páreos, os adversários e os melhores jóqueis em cada corrida. No almoço, no refeitório, o nome Itajara era o mais ouvido entre a gente.

Até que um dia, uma das assistentes de gabinete se aposentou. Para o seu lugar viria uma senhora de outra unidade, de São Paulo, para assumir as funções no Rio de Janeiro, onde ficava a sede. No dia da sua apresentação houve um evento cheio de pompa, no auditório, com a presença da presidente. Um pouco antes, ela passou pelo nosso departamento para um primeiro contato com a sua futura equipe.

Elegante, finamente trajada com um discreto terno azul marinho, madeixas reluzentemente contidas por um coque, ela foi trazida pelos braços da assistente aposentante. Era uma morena de cabelo bem preto, bem alta, olhos grandes, sobrancelha cheia, forte, com um bração sarado, num tempo em que nem existia academia fora dos espaços esportivos. Falou brevemente com o diretor, depois cumprimentou a colega assistente e adentrou a nossa sala com as mãos estendidas a cada um de nós.

– Boa tarde, muito prazer, meu nome é Itajara – disse, com firmeza desconcertante.

Desconcertados ficamos nós, de imediato, todos nós, um a um, olhando a cena incrédula. Não lembro quem conseguiu responder alguma coisa ou mesmo dizer o próprio nome. No meu caso, enquanto ela esmagava a minha mão, eu apenas olhei para o lado, como se perguntasse telepaticamente para a dona Paulina, a então aposentada, se aquilo era alguma brincadeira. Mas a contar pelo tom sério do seu semblante, jamais me surgiu a coragem de interpelar qualquer coisa naquela hora. Itajara!

Nenhum de nós foi ao auditório para a cerimônia de posse. Estávamos em choque. Como a gente ia chamar aquela nova chefe de Itajara se esse era o nome do nosso cavalo vencedor? Como alguém bota um nome desse em um ser humano? Como batizam um cavalo com um nome de gente? Que loucura!

Ainda por cima, ali no nosso território, a gente fazia piada com todo mundo. Ninguém escapava. O contínuo baixinho do andar de cima era o Gato Seco, o motorista era o Jorge Brilhantina e o cara da xerox era o Nilo Pitú. O primeiro ali que fizesse alguma referência ao famoso equino na frente da chefe estaria no olho da rua. Claro. Sumariamente. Tanto na cancha seca como na molhada, na reta final ou entrando pela curva oposta, a demissão era coisa de um sweepstake¹, ou um pescoço de vantagem.

Foram dias de muita inquietação. Quando a gente comentava algo, verificava várias vezes se não tinha alguém por perto. Na verdade, só não rolou um sonoro bullying com a nossa chefe porque a gente cuidou pra que ela jamais ouvisse quaisquer das nossas ilações. O assunto “corrida de cavalo” ficou em suspenso até o dia da sua despedida, que afinal chegou rápido como um photochart.

De repente o nosso diretor resolveu ceder a Itajara, a recém chegada Itajara, para um outro haras, sacanagem, para outro diretor cuja gerente de projetos havia sofrido um grave acidente de carro. Ela veio toda serelepe se despedir da gente, dizendo que estaria atuando no prédio da Avenida Antônio Carlos e que se alguém precisasse de alguma coisa, qualquer coisa, era só procurá-la.

Ainda bem que aquela convivência não durou muito. Era fatal alguém um dia dar uma rateada e falar alguma besteira pra moça. A gente até tinha alguma educação, eu acho. Mas a vontade de fazer piada e curtir com a cara das pessoas era algo mais forte do que nós.

Depois da estadia efêmera da assistente não tinha um dia sequer em que a gente não abrisse o jornal pra conferir os páreos do programa do Jockey Club e tentasse escolher, dentre os nomes de cavalos e éguas, todos bem estranhos, qual deles cairia bem em um filho de alguém.

E a cada nome lido era uma anedota que vinha de montada.

Grande Itajara!

  

 

¹ - Loteria cujo prêmio é vinculado ao resultado de determinado páreo de uma corrida de cavalos.

 

 


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Sorvete no Inverno


O inverno do carioca é peculiar. Se dá 19 graus no termômetro a galera já põe o casaco mais grosso que tem no armário e desanca a reclamar do frio insuportável. Diferente do Sul maravilha, que faz frio mesmo com o sol brilhante no céu limpo, no Rio, o frio, aquele intenso de 19 graus, sempre vem acompanhado de chuva fina, o que nem sempre é agradável.

Eu até gosto do frio. Como carioca, gosto de estar agasalhado no frio, acho as roupas de frio mais elegantes e tal. Mas, por outro lado, me incomoda demais a sensação de estar sentindo frio, nas ocasiões em que me descuido com o vento sul. O que não condiz com essa condição é que apesar disso tudo, pra mim, a cereja do bolo é tomar sorvete no inverno. Dizem que não é bom pra garganta, nem para as vias aéreas superiores, que provoca encarangação sistêmica... Nada! Pra mim sorvete no inverno é uma iguaria. Melhor do que no verão, acredite o prezado leitor.

Fato é que outro dia o meu tênis, de um tom bege clarinho, estava todo sujo. Pra sair no dia seguinte nos conformes, eu dei uma boa lavada nele na véspera, no tanque de casa mesmo. Minhas mãos estavam congelando quando eu tive a boa ideia de acabar o enxágue em outra pia, que tinha água quente. Ufa, foi uma delícia aquele final de lavagem.

Passou todo aquele dia, e mais a noite inteira, e nada do bicho secar. Lembrando da torneira de água quente eu tive outra ideia, que foi botar o tênis no sol, na varanda. Pelo menos até a hora de sair ele acabaria de secar e o processo seria bem mais rápido, claro, com o auxílio do nosso bom e velho astro-rei.

Na hora certinha de sair eu fui lá, tirei o calçado do sol e vesti quase que imediatamente, com umas meias de lã que cuidaram de manter o efeito do sol por ainda muito tempo. A sensação foi imediata e indescritível. Estava tipo 15 graus, um frio do capeta pra carioca, com vento leve mas gelado, e eu ali com os pés quentinhos, um conforto que eu avaliei que já devia ter feito, há muito mais tempo, e que jurei que iria repetir outras vezes.

Não sei se na rua as pessoas reparavam, mas eu estava caminhando e sorrindo, quase desfilando pela calçada na frente de casa. Jamais alguém ia imaginar que era por causa do tênis quentinho. Na certa pensariam: quem sabe o gajo lembrou de uma piada antiga; quem sabe foi o golaço do seu time no domingo anterior. Ou quem sabe, se bem conheço esse sujeito de tênis aquecido, ele está pensando com os seus botões que nessa caminhada cairia muito bem um belo sorvete de morango. É isso! Pra quem gosta de sorvete no frio a hora é mais do que propícia, diriam.

Entrei na primeira padaria e nada de sorvete. Só tinha aqueles potes enormes. No mercado da rua de trás também só aqueles copos de sorvete chiques, de marcas idem, com sabores variados, mas todos com chocolate. Éca! Chocolate não.

A moça disse:

– Naquela farmácia ali também vende sorvete – e apontou pro outro lado da rua.

Eu agradeci, estranhando um pouco, mas topei conferir. O plano original era um sorvete de casquinha, brilhantemente inderretível pro resto da caminhada. Mas como se tratava de uma farmácia, eu já atravessei a rua adequando as minhas expectativas para um picolé mesmo. Que fosse de abacaxi ou de uva e estaria tudo certo.

A farmácia realmente tinha uma geladeira horizontal no canto da loja. Fiquei atento ao cartaz que trazia os preços e os sabores de cada um e notei que as portas deslizantes estavam trancadas, possivelmente por não ter muita saída nesses dias de inverno.

Fiquei esperando que algum funcionário ficasse livre, já que eram muitos clientes em vários atendimentos. Do lado de trás do balcão, bem lá no finalzinho, quase na curva da prateleira, uma moça levantou o dedo me perguntando o remédio que eu queria.

– Sorvete.

– O quê?

– Sorvete – e apontei pra geladeira.

Uma outra atendente, que estava mais perto de mim, gritou pra colega detrás do balcão.

– Absorvente. Ele quer absorvente.

Nesse instante, toda a população da farmácia se virou pra mim.

Eu até poderia ter ficado envergonhado nesse momento, mas não acho nada demais um homem ir à farmácia comprar absorvente. O problema era que, simplesmente, não era isso que eu tinha dito, e sim sorvete.

Balbuciei alguma coisa, apontando a esmo, até que uma das gerentes da farmácia passou como uma flecha pela fila dos idosos e veio até onde eu estava. No caminho, ainda teve tempo de dar uma bronca na menina:

– Que absorvente que nada! Você é doida? Tem que ficar mais esperta, minha filha. É sorvete. O moço estava ali na frente da geladeira, olhando o folheto com os preços.

– Sorvete? Como é que ia adivinhar? Quem é que toma sorvete no inverno?

Eu dei graças a Deus por não ter de explicar tudo. Se a gerente percebeu e veio com a chave pra abrir o freezer, tanto melhor.

– Essa moçada vive no mundo da lua, meu caro. Ela está em período de treinamento e o senhor me desculpe pelo ocorrido. Absorvente... Só na cabeça dela mesmo – disse em tom quase de gracejo, àquela altura do enredo, querendo rir também.

Eu argumentei que não havia problema algum e que, realmente, tomar sorvete no inverno não era lá uma coisa corriqueira, ou trivial. Ainda pensando em distensionar o ambiente eu falei que, provavelmente, passados alguns minutos, poucos, ou assim que eu saísse da loja, todos ali estariam rindo do mal entendido, inclusive a mocinha que levou a bronca na frente de todo mundo.

Finalmente, saí da farmácia com o meu troféu em forma de sorvete e fui caminhando em direção ao Centro, prometendo sentar em algum banco da praça e deixar o tênis ao sol por um bom tempo, até pegar novamente aquela temperatura prazerosa e conservá-la até chegar em casa.

No caminho de volta eu estive pensando uma coisa: antes que o inverno acabe eu vou voltar àquela farmácia. Vou ficar bem lá atrás, quietinho, com a minha senha, e quando chegar a minha vez vou pedir um absorvente, em alto e bom som.

Estou curioso pra ver a cara das atendentes, daquela gerente e das pessoas em volta!



sexta-feira, 19 de julho de 2024

Ensaio de Orquestra


Era apenas uma entrevista de emprego. Praticamente o futuro gerente já estava acertado com o dono do restaurante e apenas faltava o ok do outro sócio. Para tanto foi marcada uma reunião, que aconteceria no próprio estabelecimento, antes da sua abertura, às 18 horas.

O gerente chegou cedo, no meio da tarde, e foi recebido pelo segurança. Após abrir a porta ele mostrou todo o espaço de atendimento e por fim indicou uma mesa, logo na entrada, pra que ele aguardasse.

Assim que se instalou e apoiou o seu notebook, o casaco e os óculos, o futuro gerente foi atraído pela decoração, os monitores de tevê, os quadros e as luzes do bar. Não deu cinco minutos e o segurança se aproximou.

– Gostou do lugar?

– Sim, bem bonito. Coisa de profissional.

– É mesmo de alto padrão esse restaurante. As pessoas que vêm aqui são cheias da grana. Sabe como é, bebidas caras, pratos caros, e o público está no mesmo nível.

– Perfeitamente.

– É aí que entra a segurança, né doutor? Pra manter tudo em ordem, pro cliente se sentir seguro aqui. Não ter qualquer problema de briga, essas coisas. Dependendo do restaurante, a segurança é a coisa mais importante de uma casa dessa, principalmente por abrir só à noite e ficar até a madrugada.

– Verdade, a segurança é muito importante mesmo.

Assim que ele terminou de falar bateram à porta. Enquanto o candidato a gerente se aprumava, botando os óculos de novo, pensando que eram os sócios, o guarda entrou com umas cinco pessoas, todos funcionários que foram se apresentando um a um.

O homem cumprimentou a todos e logo o quinteto desapareceu na porta que dava acesso a área restrita do restaurante.

Não deu cinco minutos e um rapaz todo vestido de branco, gorro e avental, veio pra perto.

– Boa tarde. O senhor é o gerente novo?

– Ainda não sei se serei.

– Ah, vai ser sim. Tenha fé. Eu sou lá da cozinha, auxiliar ainda. Mas sou eu que faço as compras do dia. Sabe como é, sem os produtos adequados, bem escolhidos, as carnes, os temperos, não tem restaurante. Pra um cardápio de sucesso não basta ter um bom chef. Tem que ter os produtos certos no estoque da cozinha.

– Claro, entendo, você está coberto de razão.

– Pouca gente sabe disso, mas na verdade, sem o auxiliar de cozinha, não tem cardápio de excelência. E sem cardápio, não tem restaurante.

– Verdade, a cozinha é mesmo a alma do restaurante. E o auxiliar também.

O rapaz voltou pra cozinha todo contente e o gerente foi até a área aberta, ao lado do bar, onde tinha um enorme balcão. Lá fora uma moça de luvas e chapéu arrumava as mesas e varria o chão. Depois dos cumprimentos, ele perguntou quantas pessoas integravam o grupo da limpeza.

– Tem grupo não senhor. O grupo sou eu mesmo. Chego cedo e arrumo tudo certinho. Depois, durante a noite eu só dou uma ajeitada nos banheiros e pronto.

– Certo. Bem legal. Parece perfeito.

– Imagina se a pessoa vai num restaurante e encontra o lugar sujo, senhor? Nunca mais volta. Imagina. A primeira coisa que tem que estar perfeita é a limpeza. E pronto. Tem que estar limpo e parecer limpo. Isso sim. Sem limpeza não tem restaurante chique, meu senhor.

– Limpeza e um bar à altura – interrompeu o barman, com duas garrafas nas mãos.

– Ah, você é que pilota o bar? Que lindo ele, né?

– Isso aqui foi escolhido a dedo. Cada garrafa, cada complemento, cada fruta ou adereço aqui tem a minha participação. Você pode ter um chef premiado, numa casa idem, mas sem um bar e um barman maneiro, não tem restaurante.

– É a mais pura verdade – concordou o gerente, continuando o seu passeio pelo salão.

O segurança veio até a porta pra transmitir o recado de que os sócios iam atrasar um pouco. E perguntou se tinha algum problema. O gerente fez sinal positivo com a mão, que estava tudo bem quanto ao horário. A seguir, o guarda apresentou a arquiteta, que também acabava de chegar.

– Boa tarde. Muito impactante o seu trabalho aqui – disse apontando as paredes e os ambientes.

– Obrigada. Eu entendo que o carro-chefe de um estabelecimento é a sua capacidade de ser aconchegante, num ambiente sofisticado e eficiente. Desde a decoração até a disposição das mesas, tudo tem de funcionar como uma engrenagem, sabe? Na verdade, eu costumo dizer que sem uma boa cenografia, não tem restaurante de sucesso. É isso, modéstia à parte.

– Olhando em volta eu sou obrigado a concordar com a senhora. Parabéns.

Não deu cinco minutos e chegaram mais seis pessoas, todas juntas, falando alto e trazendo o segurança pelo braço. Depois de apresentados o que se deu foi uma sucessão de frases, cada qual com a sua posição:

– O doutor vai ser o nosso gerente, né?

– Assim espero.

– É que aqui nós somos como uma família! Um garçom cobre o outro, a gente se ajuda o tempo todo e cada um atende o cliente como se fosse um amigo.

– Tem gente que vem aqui por causa do nosso atendimento. Isso é um troféu pra gente.

– Se eu fosse listar os elogios, nossa, não acabava hoje – disse o senhor baixinho, que parecia ser o mais velho deles.

– A simpatia, a rapidez, a polidez, a educação, a gente sabe bem o nosso papel nesse serviço.

– Eu concordo plenamente. Eu diria até mais. Que o garçom é a alma de um restaurante. Sem garçom não tem restaurante – disse o gerente, abraçado pelo grupo, eufórico com aquelas palavras.

– Mas era isso mesmo que eu ia falar. Grande gerente o senhor vai ser.

E ficaram ali conversando, contando os causos dos clientes, assíduos e esporádicos, e dos bêbados e dos famosos, com suas esposas e suas saias justas, literalmente, até que por fim chegaram os sócios, já quase na hora de abrir as portas.

 

A primeira coisa que o gerente me perguntou, quando se preparava pra me contar essa história, foi se eu tinha assistido ao filme Ensaio de Orquestra, do diretor italiano Federico Fellini. Depois, me reportou que se sentiu dentro daquela comédia, ante as narrativas dos funcionários do restaurante, cada um se vendo como mais imprescindível que o outro.

A similaridade acontece justamente porque, no filme, durante o ensaio de uma orquestra italiana, um canal de tevê vai fazer uma reportagem e pede um depoimento de cada músico. Nos depoimentos, quase todos cômicos, fica claro que cada um considera o seu instrumento como o mais importante da orquestra, a alma da companhia e que, sem ele, não haveria a música.

O Eterno Fellini em sua genialidade!

 

 


sexta-feira, 28 de junho de 2024

O Último Beijo

 

Meu padrinho sempre me beijava quando chegava lá em casa. Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho dele é quando avistava o seu carro encostando na frente da garagem e eu saía correndo do futebol pra ir lá dar um beijo nele.

A gente tinha uma diferença de idade de uns quinze anos. Então, nessa minha época de garoto, essa diferença era bem grande, pelo desenvolvimento que ele já tinha como adulto.

Outra coisa que lembro é que os meus amigos do futebol, os vizinhos da rua, tentavam caçoar desse nosso beijo trocado e ensaiavam algum bullying, que naquele tempo também existia, mas não com esse nome. A coisa não prosperava, primeiro porque eu não dava a mínima pra opinião deles; depois porque achava aquilo muito carinhoso e gostava de ter essa proximidade. E por fim, eles logo percebiam, ou lembravam, que eu também beijava o meu pai daquele jeito, nas mesmíssimas situações em que o outro era o meu padrinho.

Mas, mesmo assim, me lembro de algumas frases dos amigos, me testando, me interpelando se eu não tinha vergonha de beijar um homem, que as pessoas podiam achar estranho aquilo. O assunto estancava prontamente com a minha resposta, um definitivo “não”, dando por encerrado o assunto ou qualquer nova argumentação.

As meninas da rua, não tenho certeza, talvez me falhe a lembrança, mas não lembro de ter ouvido coisa semelhante da parte delas. Algumas, é verdade, sorriam livres enquanto me viam sair do jogo e depois retornar correndo, com cara de alegre. Mas falar, nunca falaram nada de ruim. As meninas sempre se mostraram mesmo muito mais prontas para a vida, principalmente para as demonstrações de carinho e afeto, seja quem fosse o alvo daquelas manifestações.

O padrinho do meu irmão era irmão do meu padrinho, ambos filhos da minha tia, irmã do meu pai. Em vias de regra eles eram nossos primos, mas pela diferença de idade a gente sempre os tratou como tios. Da parte da minha tia, mãe deles, tenho claro que ela sempre ajudou demais a gente. Tanto no aspecto financeiro como nas questões familiares, de cuidados e preocupações, sempre querendo saber como a gente estava indo na escola, as notas etc.

Perdi a conta de quantas canetas com o meu nome gravado eu ganhei da minha tia. E quando digo minha tia, acrescento a minha avó, que morava com ela, e, claro, o meu padrinho. Principalmente nos meses de novembro, quando saíam as notas das provas de fim de ano, era certo eu ganhar uma dessas canetas lindas, brilhantes, que eu mal usava no dia a dia, por serem preciosas demais pra mim. Algumas delas eu trago bem frescas ainda na minha memória. Outras, por incrível que possa parecer, eu ainda tenho guardadas na minha gaveta até hoje. Num estojo preto, entre meias, carteiras antigas e algumas cartas, estão eternizadas uma caneta e uma lapiseira, ambas da marca Cross, com o meu nome impresso.

Não sei direito se passei a gostar de caneta porque ganhava ou se ganhava justamente porque gostava de canetas. Mas, numa ocasião, quando meu padrinho me deu um relógio Seiko, de fundo branco, com caixa e pulseira de metal, lindo, que juntou gente na escola pra ver no meu braço, eu descobri que era eu que gostava das canetas, e claro, de relógios também. Até hoje tenho uma atenção especial com esses dois itens de apreço, reflexos da minha juventude.

Uma foto que eu tenho e que marca um período importante de convívio com o meu padrinho, retrata a primeira vez que eu fui no Maracanã. Foi tudo iniciativa do meu pai. Lembro bem da caminhada pelo entorno, na parte externa do complexo, as rampas de acesso e os corredores para o campo, a estátua do Bellini, os banheiros, os bares, a vista lá de cima, tudo era grandioso, imponente. E na foto que registra essa memória estamos eu e meu irmão, ladeados por nossos padrinhos e as bandeiras do Flamengo. O fotógrafo era o meu pai.

Hoje em dia eu sou levado a ponderar que a vida, a um certo momento, foi nos afastando. A distância crescia, não só no aspecto físico – eu morando em outra cidade – mas também no aspecto do convívio, embora eu tenha certeza de que a gente, de alguma maneira, sempre se gostou enquanto primos e como padrinho-afilhado. É que os padrinhos, numa certa fase da vida, principalmente quando passam dos 60 anos, e, ao avaliar a trajetória e o crescimento dos seus afilhados, tendem a considerar que estes não precisam mais deles, o que é, via de regra, um desmedido equívoco.

E eu digo isso não só na qualidade de afilhado, mas também como padrinho que sou. Pois assim como se deu comigo, sendo afilhado do meu primo, eu mesmo sou padrinho da minha prima, numa espiral de amores e afetos que nem sempre puderam se concretizar pela vida como zelosos e eficientes o tanto que deveriam.

De novo, as distâncias vão se impondo e a gente só se dá conta dessa lacuna de sentimentos quando encontra, no fundo de uma gaveta, uma certa caneta, linda, dourada, com o nosso nome escrito.

Pois eu te desejo muito acolhimento na sua passagem.

Vai em Paz meu padrinho.

Que Vó Lina te receba com seus abraços.

E que a espiritualidade iluminada te conduza.

Te guiando aos bons caminhos da luz e do amor.

E como que te alcançando novamente na janela do carro, fique com o meu beijo!

 

 



sábado, 15 de junho de 2024

A Avó Carioca


Suzaninha estava no recreio da escola. Sentados nos bancos que rodeavam o pátio, os colegas se revezavam contando o que fizeram durante as férias. Se viajaram, onde tinham ido, quem foi junto com eles e tudo o mais, numa típica narrativa de adolescentes no retorno às aulas, um querendo impactar mais do que o outro, tentando impressionar os amigos com sua própria aventura.

Quando chegou a vez da menina ela disse simplesmente “eu ganhei uma avó carioca”. Aquilo foi um tremendo alvoroço e todo mundo ficou curioso pela história dela, que deveria vir logo em seguida. E veio.

 

“A gente saiu de Juiz de Fora logo no início da manhã e fomos direto pro Rio, quase sem parar. Aí ficamos hospedados na casa de uma amiga da minha mãe, no bairro de Ramos, que fica no subúrbio da cidade, perto de Bonsucesso e Olaria.

“Um dia a minha mãe quis fazer uma surpresa pra amiga dela e foi pra cozinha preparar um prato que ela gostava. No meio do processo ela deu por falta de alguns ingredientes e me pediu pra ir ao supermercado comprar. Ficava pertinho. Aliás, no Rio de Janeiro, tudo fica pertinho, principalmente no subúrbio. As lojas vão se espalhando pelas ruas e você encontra praticamente tudo o que precisa dentro do mesmo bairro. Perto de onde a gente ficou se vendia de tudo, de palito de churrasco a carro zero.

“Mas eu estava no mercado nesse dia com a listinha que minha mãe pediu e fui botando tudo na cestinha, já que eram produtos mais ou menos leves e em pouca quantidade. Nem precisava de carrinho, nada. Mas o mercado estava cheio, com muitas filas e filas grandes em todos os caixas. Avistei uma um pouco menor e foi ali que eu entrei. E toca de demorar. Nada andava. Os velhinhos à minha frente custavam uma eternidade pra passar os produtos e ainda por cima ficavam um dia e meio conversando com o caixa. Este, por sua vez, ria, gesticulava e conversava com os clientes como se estivessem todos na plataforma de uma estação ferroviária, num domingo de sol. E olha que de trem eu entendo, né gente...?

“Pois então, depois de muito tempo ali parada, pacientemente, eu me dei conta, de um minuto pro outro, de que a fila que eu estava era a fila dos idosos, a fila das prioridades, como grávidas, pessoas com crianças e, claro, idosos. A gastura que subiu aqui no pescoço foi grande. Minha nossinhora. Como eu não reparei aquele monte de senhorinhas e os velhinhos em volta, todos de cabelos brancos, conversando despreocupadamente, como se o mundo todo estivesse pausado no tempo deles? A maior placa de caixa preferencial bem na minha testa e eu não vi? Como pode?

­“Na hora eu pensei que poderia, ou deveria, mudar de fila. Mas como elas eram enormes e em todos os caixas, não ia resolver. A essas alturas era certo que minha mãe ia me matar por eu ter demorado o dia todo ali. Enfim, o certo é que eu não tinha como justificar a presença naquela fila exclusiva. Ia ser um dó de dar pena, como falam. Eu olhava pros lados, consultava o relógio, a minha cestinha, focava lá longe, na outra ponta do mercado e, até a fila para quem tem até 10 produtos também estava cheia. Nada enfim me trazia uma boa ideia pra sair daquela situação aflitiva.

“Atrás de mim uma avozinha percebeu a minha inquietação e depois de muito me escrutinar ela chegou mais perto:

– Tu não tinha visto que era fila de idoso, né?  Menina, olha a sinuca que tu tá agora.

– Ahã, eu só vi que essa fila estava mais vazia e entrei. Tô lascada.

– Tu pode tentar falar com o gerente. O seu Pedro. Ele é um cara legal.

– Não sei não. Acho que ele simplesmente vai me mandar entrar em outra fila. E eu sei que tô errada.

– Ou então, pode tentar o caixa. Ele também é um sujeito gente boa, acho que é Edinelson o nome dele. Quando chegar na sua vez você diz que se distraiu e tal. É uma tentativa.

“Eu fiquei ali calada, pensando, e nada me vinha como solução. Passou um bom tempo e já chegaria a minha vez em poucos minutos. Ah, que bosta, vou ter de ir pra outra fila mesmo – pensei. Ô vida sem jeito, já dizia o Chicó do Suassuna.

“No instante em que eu me abaixei pra pegar a minha famigerada cestinha a senhora falou:

– A gente pode fingir que você é minha neta.

– O quê?

– Sim, você é minha neta e eu sou sua avó. Claro, e a gente veio juntas ao mercado e vamos passar as nossas compras no mesmo caixa. Só isso. O que você acha?

– Será? Me dá um pouco de medo. Mas a senhora faria isso por mim?

– Ué, claro. Não sou eu que estou dando a ideia? Vamonessa!

“A gente passou as compras e eu ajudei a passar as dela, naturalmente, conversando bem normal pra disfarçar. Depois foi a vez dos meus temperos e o caixa, que não parava de falar, nem notou que fizemos duas contas e cada uma pôs os seus produtos em sacolas separadas. O legal foi que durante esse período ela me chamava de neta e eu a chamava de vó, soltando uma risada aqui, outra ali, mas tudo na maior parceria.

“O caixa desejou bom dia pra nós duas e chegando na saída do mercado ela disse:

– Ufa. Acho que conseguimos. Mas ainda tem uma coisa.

“Eu gelei dos pés à cabeça.

– Bem, pra ficar tudo certo mesmo, agora só falta você me tomar a bênção, afinal as avós gostam de abençoar as suas netinhas.

– A sua bênção, vó. E obrigada pela ajuda. Não fosse a senhora eu só sairia do mercado de noite.

“Vai com Deus – ela disse entre risos.

“Uma coisa eu digo a vocês, eu jamais podia imaginar que uma senhorinha como aquela fosse me propor uma coisa assim. Ela toda séria, uma pessoa distinta, engendrando uma mentira daquelas só pra me ajudar. Veja você!

“Depois que eu contei pra minha mãe ela adorou a história e cada vez que ia no mercado ficava imaginando encontrar a tal velhinha pra saber que cara tinha a minha avó. E ainda me pediu pra contar esse causo, tudo de novo, um monte de vezes durante as férias. A família toda já sabe que eu agora tenho uma avó muito maneira que mora no Rio de Janeiro.”

 

Tão logo a Suzaninha acabou a narrativa os colegas começaram a galhofar do episódio:

– Nossa. Parece causo de livro mineiro.

– Se fosse aqui em Minas a velhinha ia era chamar o gerente, ou a segurança. Isso sim.

– E ia achar um absurdo, um acinte, uma menina furando a fila dos idosos.

– Talvez mandasse até prender a pobre da Suzaninha.

– Mas no Rio é diferente. As pessoas são expertas. Exxxpertas, como eles dizem, carregando no xis.

– Não só as pessoas, mas as velhinhas também. Uma avozinha assim aqui nessas bandas ia ser muito massa. Ia dominar tudo.

– Pelo menos ia dominar os supermercados.

– E as filas... Ao menos a dos idosos...

E assim ficaram os estudantes ali, sugerindo toda sorte de situações, tendo como personagem a avozinha experta carioca, até bater o sinal do fim do intervalo.

Ao voltar pra sala, assim que a professora entrou e deu o seu boa tarde, um aluno, digamos, um dos mais irreverentes do grupo, respondeu:

– Benção, fessora!

Daí em diante ninguém conseguiu segurar o riso.

Nem a pobre da professora. Que apenas achou aquilo muito estranho.

 

 


sexta-feira, 31 de maio de 2024

O Pijama

 

Bianca era uma adolescente que não dava trabalho à mãe. Muito quieta, estudiosa, a menina gostava mesmo era de ficar em casa nos finais de semana e procurava nos canais e nos aplicativos da tevê, os filmes que queria assistir.

A sala de casa mais parecia um quarto, onde as pessoas ficavam de pijama até bem tarde e estendiam o café da manhã desde a cozinha até o sofá, tudo na maior tranquilidade. Principalmente a filha mais nova, essa era a que mais resistia a trocar o pijama pra uma outra roupa qualquer. Não foi à toa que a mãe lhe presenteou com um enorme pijama de zebrinha, todo de tecido atoalhado, com mangas e pernas compridas.

A única preocupação da Bianca era que fosse feita alguma foto sua com o tal pijama. Era lindo, ok. Ela adorava, ok. Mas daí a cair nas mãos e nos olhos das amigas, já era algo que ela tinha uma grande vergonha e por isso cuidava pra que sua imagem vestida de zebra não caísse em mãos alheias. A família entendia com certo exagero toda aquela preocupação da adolescente, pelo simples fato de que o pijama ficava bem bacana nela. Enfim, era a sua vontade. Fazer o quê?

A prima, que morava do outro lado da cidade e, de vez em quando, vinha passar os fins de semana com a tia, era a melhor amiga da pequena Bianca. As duas tinham um gosto cinematográfico parecido e dividiam a pesquisa para programar a maioria dos títulos que assistiam. Além disso, ficavam indicando filmes, diretores e atores, uma pra outra, numa verdadeira garimpagem fílmica.

Naquele dia, logo depois do almoço, a mãe entrou na sala convocando a filha:

– Eu vou ali no ponto de ônibus, buscar a Clô. Ela acabou de ligar dizendo que está chegando. A Bibi quer ir comigo?

– Ai, mãe, eu até quero, mas estou de pijama.

– O que que tem? É pertinho e você vai ficar dentro do carro!

– Será?

– Claro, ninguém vai te ver de zebrinha. Vamos logo, anda.

Interessante foi que, no caminho, a menina tinha a sensação de que as pessoas lá fora conseguiam vê-la dentro do carro. Ela ria, nervosa, mas a mãe fazia piada pra depois jurar que, com o vidro escuro, não dava pra ver nada. Com certeza.

Assim que entrou no veículo, a Clô largou a mochila no banco de trás e ficou de lado para a motorista, de modo que pudesse conversar melhor com a prima. No carro parecia haver uma competição tácita de quem era a mais tagarela. As duas falavam sem respirar, de tanto que emendavam um assunto no outro. Enquanto isso, a mãe tentava uma brecha pra avisar que ia dar uma paradinha no mercadinho pra comprar pão e outras coisas, guloseimas, bolos e doces, na maioria.

Quando estacionou o carro na calçada, em frente ao mercado, a filha meio que surtou:

– Ah, mãe, vai parar aqui? Olha como eu estou? Com esse pijama. Vamos direto pra casa e depois você vem comprar as coisas!

– Ai, filha, é rapidinho. Fiquem as duas aqui dentro do carro que não vai ter problema algum.

– Puxa, se soubesse disso não tinha vindo. Olha o mico que eu estou?

– Que nada, Bi, a prima tá é muito chique com essa zebrinha. Relaxa.

A mãe sumiu dentro do mercadinho e as meninas ali no carro, contando a história da humanidade, de tanto assunto que tinham. Não se sabe quanto tempo depois, a mãe surgiu na calçada com algumas sacolas e a sobrinha saiu pra ajudar.

Quando estava tudo devidamente acondicionado na mala, no que a mãe virou a chave pra ligar o carro, puff, o motor não ligou. Tentou mais uma vez, nada. Foi só o barulhinho seco da ignição que falhava sem piedade. A menina disse “não”, no banco de trás. A prima disse “calma”, no banco da frente. E a mãe motorista disse “pultaquilparil”, socando o volante.

– Eu sabia que ia dar merda. Era só eu botar os pés fora de casa com essa zebrinha do capeta, que isso ia acontecer. E agora, mãe? O que a gente faz?

A mãe saiu sem responder. Entrou no mercado de novo, apressada, e voltou com o seu Jônatas, que trabalhava ali. O homem ouviu com atenção o barulho da ignição sufocada e sentenciou:

– É bateria.

– Como assim, seu Jônatas? O carro é novo? A bateria é nova?

– Essas coisas acontecem. Pode ter alguma perda de energia por algum equipamento funcionando mal. Vamos ver se conseguimos fazer um complemento de carga, de outra bateria para a sua. Pelo menos vai dar pra senhora chegar em casa.

– Estou com duas meninas no carro, como o senhor vê. Elas precisam sair?

– Não. Precisa não.

Aliviadas por não terem que sair do carro, as duas viram o homem pegar um fio extenso e começar a falar com algumas pessoas por perto, apontando pro carro enguiçado e fazendo sinais que remetiam à tal carga que devia ser dada na bateria

Nesse momento, uma van enorme parou ao lado delas. Quando o motorista saiu junto com o filho, as duas meninas tiveram um susto.

– Olha, não é o Guilherme ali naquela van?

– Minha nossa. É o Gui e o pai dele. Vou me jogar atrás do banco. No chão eles não vão me ver.

– Com esses vidros escuros, sem chance. Não pira, Bibi.

De repente, a mãe abre a porta do carro, junto com o seu Jônatas e anuncia:

– Olha filha, vamos fazer uma carga na bateria. A gente estava procurando um outro carro pra dar a carga e olha quem apareceu, o querido do Guilherme, seu amiguinho da escola e o pai dele. Viu que sorte a nossa?

– Mãe, eu estou vestida de zebra, lembra? Como assim o Gui e o pai dele?

– Ah, não vai ter jeito. A gente precisa da ajuda deles pra conseguir ao menos levar o carro até em casa.

– Mas, mãe...

No momento em que abriram o capô dos dois carros e foram identificar as baterias, os polos e os conectores dos fios, a mãe gritou lá de fora:

– Bibi, passa pro banco da frente pra monitorar o painel pra mim. Depois vou te pedir pra virar a chave, tá?

– Ô mãe, que Bibi? Que Bibi, mãe? Não me chama de Bibi não, por favor!

A mãe nem ouviu, ocupada que estava em dar cabo àquela situação.

Ligado o motor da van, agora era só dar a partida no carro enguiçado e a bateria ia carregar. Da primeira vez não ligou. Mas da segunda, sim. A menina então abriu o vidro pra dizer que o painel tinha acendido de novo e, com isso, confirmar as expectativas de todos. Foi nessa hora que o Guilherme, o Gui, chegou na janela onde estava a sua colega de escola.

– Oi, Bibi. É Bibi, né? Tudo bem? Você tá linda nesse pijama. Estava dormindo no carro é?

– Muito engraçadinho você.

– Ué, estamos aqui ajudando a desenguiçar o carro da sua mãe. E eu estou preocupado com o seu sono.

– Eu conheço bem esse seu risinho, tá? Eu não estava dormindo nada, se você quer saber.

– Tá, então de onde você veio, vestida assim de zebrinha? Já sei, estava numa festa a fantasia e o tema era Madagascar. Taí, gostei. Cadê os outros animais, o leão, a girafa e os macaquinhos?

Assim que o nome Madagascar foi pronunciado pelo rapaz, uma sequência de risadas veio de todos os lados. Não só a menina e a prima, antes envergonhada pelo encontro, mas também a sua mãe e o pai do Guilherme, no instante em que ouviram falar no filme, olharam pra menina dentro do carro e deram um tchauzinho pra zebrinha.

No final, até o seu Jônatas, recolhendo os fios, meneava a cabeça e escondia o riso, dizendo baixinho:

– Madagascar! Essa garotada não deixa passar uma!