sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O Procedimento


Foi pura sorte eu ter entrado no banco exatamente na hora que começava a chover. Estava tudo muito vazio, já que atualmente todo mundo resolve as coisas pela internet, pelo aplicativo do banco etc. No meu caso, eu só queria fazer um depósito, em dinheiro, e não havia alternativa, a não ser ir até a agência. Portanto, já que eu estava lá, optei pelo caixa mesmo, ao invés de usar aqueles envelopinhos do autoatendimento.

Junto comigo entraram também algumas pessoas, somente com o motivo de fugir da chuva que apertava. Ficamos todos um tempo ali na entrada, sacudindo as roupas ainda úmidas. Só depois disso que eu fui pra porta giratória, a caminho do caixa.

Ao me ver, o guarda fez sinal pra eu passar e perguntou:

– Onde o senhor vai?

– No caixa. Fica no segundo andar, né?

– Mas e o guarda-chuva?

– Não tenho guarda-chuva não.

– Mas nós vimos pela câmera o senhor mexendo na sua mochila e botando alguma coisa dentro dela. E parecia um guarda-chuva.

– Eu nem tenho mochila, moço. Estou só com esse envelope na mão.

– Tinha uma arma na sua mochila?

– Como assim, que arma rapaz? Eu nem estou com mochila alguma.

– O senhor pode ter botado a mochila, com a arma, no armário de guarda-volumes ali fora.

– Ok. E do que me adianta uma arma dentro da mochila, fechada no armário do lado de fora? Você acha que se eu fosse fazer um assalto ou qualquer coisa, ia deixar a arma lá fora?

– Eu não sei de nada. O senhor é que está dizendo. Eu estou só perguntando.

Uma atendente, que talvez estivesse percebendo o diálogo surreal, veio me ajudar. Fez um sinal para o guarda pavonesco e me levou a uma baia de atendimento, daquelas onde ficam os gerentes.

– O senhor quer ir até o caixa pra quê?

– Pra fazer um depósito. Em dinheiro.

– Humm... Mas... Esse montante é seu mesmo? O senhor pode comprovar a origem desses valores? São notas numeradas em sequência? Têm alguma marca de tinta nelas?

– Marcas de tinta? São só 300 reais em notas de 50. Não tem nada de montante.

– O senhor vai depositar lá com a dona Marízia? O senhor é amigo dela?

– Não sou amigo não. Eu nem a conheço.

– O senhor já trabalhou neste banco?

– Nunca trabalhei em banco. Só vim fazer um depósito. Eu raramente venho a agência.

– Fique tranquilo. Está tudo bem. Fique calmo. Eu vou providenciar os papéis para o senhor assinar.

Olhando pros lados, eu notei que o saguão de atendimento dos gerentes estava igualmente vazio. Só havia as mesas, os computadores, nada de gerente, uns carimbos, alguns copos e umas canetas e só. E também não tinha cliente algum esperando, a não ser eu.

A moça voltou com uns papéis e foi logo botando os óculos, enquanto se sentava ao meu lado. Notei que ela não ficou na cadeira do outro lado da mesa, como seria normal em um atendimento. Mas, normalidade era o que eu menos tinha visto até então.

– Pelos nossos registros a sua conta é originária do Rio de Janeiro. O senhor confirma?

– Sim, eu fiz a transferência da conta pra cá quando vim morar aqui.

– E qual foi o motivo?

– É isso que estou dizendo: porque vim residir aqui.

– Eu pergunto porque o senhor veio residir aqui? Houve alguma ocorrência na antiga agência, no Rio?

– Não senhora. Eu vim trabalhar aqui. Eu pedi transferência do meu trabalho.

– Qual é a senha do seu e-mail? É do Yahoo não é mesmo?

– Não. Não vou te dar senha alguma. Que isso agora?

– Ok. Então qual é mesmo o valor do consignado que o senhor deu entrada? E o senhor lembra qual o tempo total do contrato?

– Olha, eu não pedi empréstimo nenhum. Verifica aí que deve ter algum erro.

– Outro ponto: qual o dedo que o senhor costuma usar no leitor digital no caixa eletrônico?

Nisso se aproximou o mesmo guarda da entrada e ficou de pé ao meu lado. Às vezes ele tirava o cassetete do cinto e batia na palma da mão, depois guardava de novo. Incomodado com a minha demora em responder ele falou:

– Olha, as câmeras gravam sempre o dedo que o senhor usa para os saques. Tem uma câmera acima de cada caixa eletrônico. Então, não adianta mentir porque está tudo gravado lá.

– Gente, eu uso o indicador, como todo mundo.

– Que todo mundo?

– Eu sei lá.

– Onde o senhor guarda dinheiro em casa? O senhor tem um cofre na parede? – retomou a atendente manuseando a caneta e apontando para o formulário.

– Claro que não. Não guardo dinheiro nenhum em casa. Aliás, nem tenho dinheiro suficiente pra guardar. Nem em casa, nem em lugar algum.

– E as joias? Onde ficam?

– Nada de joias. Eu tinha um único cordão de ouro, mas dei pro meu filho já faz um tempão.

– Qual o número do cofre pessoal que o senhor aluga aqui no banco?

– Não alugo cofre nenhum.

– E sobre o seu consignado, como seriam os juros caso...

– Já disse que não fiz pedido de consignado nenhum.

– Mas o senhor não veio aqui pra falar com a dona Marízia?

– Eu disse que ia no caixa fazer um raio de um depósito. E só!

– Depois que o senhor sacar o seu consignado, no caixa da dona Marízia, qual o ônibus que o senhor vai pegar pra voltar pra casa?

– Nem vou responder. Já chega.

– É no bolso da frente ou de trás da bermuda que o senhor costuma levar o dinheiro sacado?

– Tsc... tsc... Deixa pra lá, acho que vou embora.

– Uma última pergunta: o senhor pode deixar umas folhas de cheques em branco, assinadas, com a gente? Vai ficar aos cuidados da sua gerente, tá? E somente ela vai ter acesso ao seu talão, ok?

Antes que eu respondesse, incrédulo com a própria calma que eu vinha demonstrando até então, aparece do nada uma outra gerente. De longe era possível ouvir o barulho dos saltos dela e a sua caminhada firme em nossa direção. Nesse momento eu, o guarda e a atendente já estávamos todos voltados para aquela figura que se aproximava. Quando eu me preparei para uma nova sessão de contratempos e insanidades, em forma de perguntas toscas e descabidas, ela se apresentou:

– Bom dia, eu sou a Camila Parker, a sua gerente de conta. Tudo bem com o senhor?

Minha vontade estava um tanto confusa nesse momento. Não sei se eu queria denunciar pra ela o guarda que achou que eu era assaltante, se pedia a demissão sumária daquela atendente doida ou se o caso era de detonar uma bomba em tudo e ficar do lado de fora, só apreciando o estilhaçar dos vidros da fachada da agência. Nossa, ia ser demais aquilo. Mas enquanto eu organizava os meus pensamentos ela me interrompeu de novo:

– Quero lhe dar uma informação importante. Primeiramente, o senhor nos desculpe por tudo o que aconteceu aqui há pouco, mas esse é o novo procedimento desenvolvido para os nossos correntistas aposentados. É que, estatisticamente, eles são sempre as principais vítimas dos golpistas, dentro e fora da agência. Pensando nisso, e no bem estar dos nossos clientes, o banco tomou as providências devidas e resolveu fazer esta experiência, digamos, uma jornada educativa, um procedimento especialmente elaborado pelo CEO internacional global do banco, para que os idosos não caiam mais nesses golpes infames.

– E o senhor se saiu muito bem – murmurou a atendente sorridente, seguida pelo aceno de cabeça do guarda, já mostrando uma fisionomia bem mais amigável, sem o cassetete na mão.

Do nada, sem nenhum aviso, uma sensação estranha foi surgindo em mim. Aos poucos foi me dando um alívio e eu fui rememorando todo o ocorrido, avaliando os absurdos em sequência. Uns barulhos indecifráveis também foram aumentando, acho que da oficina mecânica que fica ao lado do meu prédio. Junto a isso, uma luz branca veio bater acima da cama e, por fim, toda essa conjunção de fatores me fez acordar.

Eu olhei devagar pra todos os cantos do quarto, depois alcancei o celular, desativei o despertador e puxei o bloquinho que fica na cabeceira, pra começar a anotar todo aquele sonho, antes que eu me esquecesse de tudo.

Mas que porra de procedimento!




segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

A Camisa


Durante a partida nenhum dos jogadores percebeu a presença da ilustre torcedora no setor reservado aos convidados. Ela e o marido vinham sendo ovacionados pelas organizadas e, só após o apito final, com a vitória do time, todos em campo puderam reverenciar a presença da Rita Lee no estádio.

Corria a década de 1980, época da famosa Democracia Corintiana, movimento político pelas eleições diretas no país, que levou vários artistas a abraçar a causa que pedia simplesmente o direito de votar.

Foi então que, nessa partida, a própria Rita Lee decidiu tornar público que se aliava à causa, pedindo junto com aquela equipe de futebol que a lei fosse alterada para que os brasileiros pudessem eleger os seus representantes políticos. Agradecidos, alguns jogadores foram falar com a cantora e receberam um convite especial para que fossem ver um show dela em São Paulo.

– Mas leva uma camisa do timão pra mim! – teria pedido a Rainha do Rock, o que logo foi aceito por eles.

Passaram alguns dias e três ícones desse histórico time corintiano resolveram aceitar o convite da cantora. Naquela noite, Sócrates e Casagrande, na companhia de outro craque do time, Wladimir, foram ao show da Rita Lee. Assim que viu o trio, uma produtora reservou um local especial pra eles e disse que criaria uma surpresa para a roqueira, quando então seria anunciada a presença deles no teatro.

Quase no final do show, a mesma produtora veio combinar com eles:

– Olha, vai ser um baita presente pra ela. O locutor vai anunciar os seus nomes e vocês sobem ao palco pra fazer a surpresa, ok? Fiquem ligados que vão chamar vocês ao palco.

Animados, os três mal podiam esperar pra abraçar a cantora e festejar com o público. Foi aí que o Doutor, como era chamado o Sócrates, lembrou de algo importante:

– Casão, você trouxe a camisa pra ela?

– Que camisa?

– Pô, não lembra que ela pediu uma camisa do timão pra gente?

– Minha nossa, esqueci completamente da camisa!

Olhando pra plateia próxima ao palco, um deles avistou um sujeito, dançando e cantando a plenos pulmões, vestindo uma camisa do Corinthians.

– Ó Casão, olha ali um cara com uma camisa. É a sua. A Nove. Certinho.

– Ai, Wladimir, quebra essa pra mim. Vai lá pedir pra ele a camisa?

– Cara, a camisa é a sua. Ele não vai querer dar pra mim, nem a pau, amigo. Mas pra você ele vai até tirar com prazer. Segura essa, respira fundo e vai com fé. Pensa na Rita.

E lá foi o Casagrande, todo sem jeito, falar com o tal corintiano. De longe os outros dois só viam ele gesticulando enquanto o cara o abraçava, botava as mãos na cabeça, até que, de repente, o homem tirou a camisa e beijou a mão do craque.

Quando retornou ao seu lugar, o Sócrates ainda comentou que o sujeito era um cara bacana, pois tinha ficado sem camisa no meio do show e que, sendo assim, iria voltar pra casa daquele jeito, de noite, e estava até meio frio lá fora. O Casão olhou pra trás e falou que, ao agradecer, disse que ele podia procurá-lo no centro de treinamento, pois ele ia ganhar uma camisa novinha do coringão. Mas, enfim, naquela noite não tinha jeito.

– Hoje ele vai voltar pra casa sem camisa mesmo. Fazer o quê? – disse o atacante.

Ao final do show todo o plano se concretizou da melhor forma. Os três subiram ao palco, deram a famigerada camisa nove de presente pra Rita Lee e ainda cantaram junto com ela uma música final, entoando com a plateia o célebre estribilho.

 

Eu vi o Casagrande contar esse episódio num programa de televisão, faz algum tempo. Imediatamente achei a história demais de boa e quis contar também aqui. Mas, como consta no manual de estilo da crônica, há sempre os bons desdobramentos que se seguem a uma boa história.

Foi então que eu passei a avaliar que a tal camisa doada devia estar suada, pra não dizer o pior, já que o cara a estava usando no meio de um show de rock. E quando a Rita a recebeu das mãos do artilheiro deve ter sentido na hora algo estranho e deve ter ficado muito desconfiada, se perguntando “como o cara me dá uma camisa assim, fedida?”

Depois foi a vez de eu pensar no próprio cara que doou a camisa. Ele indo pegar o metrô de volta pra casa, tarde da noite, as pessoas olhando pra ele, só de calças, e ele todo orgulhoso, com cara de felicidade, por ter dado a sua camisa pro seu grande ídolo Casagrande. Aquele risinho no rosto dele ninguém jamais entendeu.

Aí, quando ele chega em casa, a mulher pergunta o que aconteceu e ele, ainda sorrindo, explica:

– Amor, o Casão estava no show da Rita e do nada veio pedir a minha camisa.

– Ah, tá. O cara joga no time. Ele que devia te dar uma camisa. Mas vem pedir a sua? Essa é boa. Só falta você dizer que autografou pra ele também? Ah, conta outra Carlos Henrique!

– É sério, amor. Eu sei que parece coisa de maluco. Mas foi exatamente assim que aconteceu.

Por último, ainda seguindo o citado manual, talvez o sujeito tenha ido até o Parque São Jorge, local de treino do Corinthians, cheio de esperança. Todo animado, chegou pro segurança na portaria, contou a história de ter dado a camisa pro Casagrande, no show da Rita Lee, e afirmou que queria entrar pra falar com ele e ganhar uma camisa nova do craque. O guarda, por sua vez, deve ter olhado pra ele de cima a baixo, depois soltado uma risada contida e, pausadamente, foi explicando:

– Meu amigo, eu tenho 15 anos de portaria de clube. O que eu já ouvi de história nessa vida daria um livro. Um livro dos grossos, assim. Mas a sua situação realmente é criativa. Essa é boa demais. Então o Casagrande, o Casão, o goleador do time, pediu a sua camisa, a camisa do Corinthians, que ele tem aos montes aqui, mas ele queria justamente a sua. E ele disse que daria uma nova pra você? Olha, parabéns!

– Eu sei que é difícil de acreditar. Mas eu juro que é tudo verdade.

– Como eu fico agora? O que eu posso fazer por você é pedir a um rapaz da limpeza pra ir lá e dar o recado pra alguém da comissão técnica. Só isso. Faz assim: me dá o seu nome, eu repasso pra ele, digo que você está aqui e vamos ver o que acontece.

– Mas ele nem sabe o meu nome. Putz. Agora lembrei que nem disse o meu nome pra ele.

– Pois então, aí fica difícil, amigo. Concorda comigo?

 

O pobre rapaz já tinha contado essa aventura na pelada, no fim de semana. O trato com os amigos foi que eles até poderiam acreditar na história, mas só se ele realmente conseguisse uma camisa do Casagrande, autografada pelo atacante, como sinal de agradecimento. Aí, sim, a zoeira da qual ele era vítima toda semana cessaria por completo. O problema é que, como vimos anteriormente, a contar pelo diálogo com o segurança à frente do Centro de Treinamento, isso definitivamente não vai acontecer.

Provavelmente, o apelido de “Camisa do Casão” foi a mais branda das gozações que ele deve ter sofrido, vida afora, nas suas peladas de domingo.


 




quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Má Vontade


Uma das coisas mais irritantes é quando o mercado está vazio e mesmo assim as filas não andam. Sempre que isso acontece eu logo penso nos dias em que ele está cheio. E me pergunto se os funcionários seriam mais ágeis numa hora dessas ou, justamente, se se entregariam ao conformismo por não poderem fazer nada e resolver a situação.

Pelo sim ou pelo não, a minha sensação naquele dia era de pura impotência, enquanto eu olhava pra todos os lados, à procura de um caixa menos cheio ou, quem sabe, um guichê com um veloz funcionário do mês à procura de elogios da chefia.

Perto de mim, um rapaz de mochila dizia ao amigo:

– Que nome você daria ao caixa rápido, cujo atendente mais parece um caixa lento?

– Um caixa-rápido-lento – brincou o outro.

Foi então que a minha má vontade se instalou em definitivo. Eu nem tinha percebido direito a aproximação dela mas, provocada pelo diálogo próximo, logo aquela contaminação de ânimo foi alcançando a todos nós da fila, sem restrição.

Eu olhava por cima da pequena aglomeração e podia ver uma senhora, lá na frente, numa vagarosidade peculiar, digna de efeito das câmeras de cinema. Ela conversava com a mocinha do caixa, parecia até que falava em segredo, olhava a validade de alguns produtos da sua sacola e depois tornava a se inclinar para a atendente, como que para ouvir melhor o que ela respondia.

O contraste entre a nossa disposição, ali na fila, e a paciência com que a funcionária atendia aquela senhora chegava rapidamente ao limite da irritação e todos ali em volta já se rendiam à sua coletiva má vontade, dando nomes aos culpados, conforme a crença de cada um.

– O gerente. Cadê o gerente que não vê isso?

– E os apoios de caixa, aquele pessoal que destrava as máquinas, que recolhe a féria e substitui as notas graúdas por miúdas, para fazer troco? Nessas horas eles não aparecem.

– Não pode abrir algum outro guichê?

– Concordo. Tem tantos fechados no lado de lá que era só abrir mais um dos rápidos aqui.

É impressionante como alguns tipos de sensações, mesmo não sendo genuinamente nossos, passam a fazer parte da nossa conduta, assim, quase sem explicação. Eu achei que nem estava tão incomodado antes, mas passei a ficar depois de ouvir todas aquelas reclamações juntas. Foi algo crescente que parecia que me lavava numa enxurrada, ou boiada, sem que eu me desse conta.

Tentando descobrir o que era afinal a conversa da tal senhora com a moça do caixa, de repente eu me dei conta de algo perturbador. Imediatamente então eu entendi tudo. Pelos gestos da senhora eu pude perceber que não era bem uma conversa amena que se desenrolava ali. Não era a validade dos itens que ela olhava, mas sim o preço deles. E para minha surpresa, na verdade ela estava indicando à moça alguns produtos que deveriam ser subtraídos das suas compras, deixando-os pra trás, simplesmente.

Muitas vezes eu tinha a nítida impressão de que ela olhava pro dinheiro que tinha nas mãos e voltava a apontar para um produto, decidindo o que ia levar e o que ficaria no supermercado. Só que era tudo muito sutil naquela cena, dado que, além de distante de mim, tanto a senhora como a moça procuravam de alguma forma ocultar, preservar o que estava realmente acontecendo.

Intuo aqui que, no mesmíssimo instante que a minha ficha caiu, a dos outros clientes também teve o mesmo destino. E no momento em que aquelas pessoas tomaram ciência do caso por completo, tudo mudou. Mudou radicalmente. Onde antes havia só egoísmo e irritação, de um segundo pro outro se tornou empatia, compaixão e, enfim, humanidade, algo raro nesse atual e estranho Brasil.

A pressa sumiu, a impaciência se foi, o egoísmo se esvaiu por completo. Até que o gerente da bateria de caixas se aproximou do guichê e todos nós pudemos notar o modo como ele gesticulava com a senhora, a ênfase que dava às próprias argumentações, chegando a apontar por vezes a fila onde estávamos, como que reclamando da demora no pagamento das compras.

A reação que surgiu foi imediata e surpreendente para todos nós, já por demais envolvidos com aquele episódio. O primeiro que levantou a voz em defesa da pobre senhora logo foi seguido pelos demais, cada qual com mais firmeza a reivindicar o respeito para com ela, ainda mais sendo uma senhora idosa. Outro pedia ao superior que a deixasse em paz, para que terminasse de decidir as suas compras com calma, cuidando para não fazer qualquer menção à falta de dinheiro.

O gerente, meio sem entender direito o que fazer ou mesmo qual seria o seu papel naquele cenário, fingiu estar sendo chamado em outro local da loja e saiu, cumprimentando a todos e recebendo como resposta o nosso aceno de assentimento.

Lentamente passamos a nos entreolhar ali na fila, talvez nos reconhecendo como gente, como brasileiros e como o povo fraterno que um dia fomos.

Um pouco de vergonha, misturada a um sentimento de indignidade pelo comportamento que tivemos, tomou conta de quase todos nós. Primeiro a má vontade, depois a impaciência, o egoísmo e a imperdoável ausência de empatia. A seguir, a verdade, a rudeza daquela existência, veio como um tapa na cara. Por fim, restava exposta a crueza da condição humana a se impor como triste realidade brasileira.

A nossa má vontade com a vida, com o outro, com aquela senhora e seu impreciso destino. É tudo muito difícil de ser explicado com palavras. Só mesmo os olhares das pessoas que viveram aquela mesma experiência comigo é que jamais vão sair da minha lembrança. Tenho plena certeza disso!

 

 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

O Uno e o Fusca


Tão logo marcou o compromisso na cidade vizinha, Seu Olívio já calculava o jeito que tinha de dar pra vencer esse deslocamento. Sua esposa era professora nessa época e ele sabia que o Uno, que era o carro deles, se fazia bem mais necessário ao dia a dia dela, por conta do ir e vir nas várias escolas nas quais lecionava.

Ele ficou matutando por uma semana alguma saída para que a esposa não ficasse sem carro. Foi então que se lembrou de um amigo que tinha uma mecânica, bem perto da sua casa. Só depois de acertar o empréstimo do carro do amigo, um Fusca, foi que ele contou todo o problema a mulher, uma vez que já tinha a solução para o imbróglio.

Ela até ofereceu o Uno, disse que iria de ônibus, de táxi, que dava um jeito, mas logo depois agradeceu a insistência e o cuidado do marido em deixá-la tranquila pra cumprir a sua jornada de professora, pois que já tinha os percalços naturais e estes eram bastante para a sua lida profissional.

Assim foi que o Seu Olívio saiu de casa naquele dia, bem cedinho, para o compromisso na cidade contígua. O Fusca era uma beleza de carro. Muito bem tratado pelo dono, parecia novinho, tudo perfeito e funcionando, sem barulho algum, realmente aquele era um item raro, coisa de colecionador mesmo. Ele ia dirigindo e falando com o carro ao mesmo tempo, dizendo o quanto ele era bom de estabilidade e de potência, entre outras qualidades.

A tal reunião da qual ele ia participar tinha previsão de durar quase o dia todo. Por isso ele já planejava deixar o Fusca num lugar seguro, coberto se possível, em um estacionamento bacana. Quase na frente do prédio, entretanto, havia uma vaga bem debaixo de uma árvore enorme. Era bem na esquina de uma rua quase sem movimento, talvez até sem saída, calma e sem trânsito, que o levou a mudar de ideia e decidir estacionar ali mesmo, mas com todo o cuidado, medindo a distância da calçada e o paralelismo com o meio-fio, até se dar por satisfeito.

O dia de reunião passou voando. Embora cansado, Seu Olívio ainda ficou ali um tempo, conversando com alguns colegas, até resolver pegar a estrada de volta pra casa.

Do prédio até o local onde havia estacionado, ele sentiu um estado de nervosismo ir crescendo. Enquanto caminhava até a esquina, ele olhava os carros estacionados, que eram vários, mas aos poucos ia percebendo, mesmo ainda de longe, que não tinha nenhum Uno ali naquele pedaço.

Aqui, o leitor mais atento já se deu conta de que o nosso protagonista, nervoso em razão exponencial, estava procurando o seu próprio carro, o Uno, e não o carro do amigo, o Fusca, com o qual ele veio até a sua reunião.

Isto posto, sem outra alternativa possível, seguimos a narrativa, embora a nossa vontade – a minha inclusive – seja parar tudo aqui mesmo e contar ao pobre motorista a confusão que sua mente está prestes a fazer, refém de melhores juízos, o que poderá levá-lo a consequências inesperadas. Mas, sigamos.

Andando de um lado pro outro, Seu Olívio custou a tomar uma decisão, diante da dura realidade que dizia que o seu Uno definitivamente não estava estacionado ali, como aliás já sabemos. Depois de perguntar na padaria, no armazém e até na banca de jornais, o diálogo inquisitivo se rendeu por completo quando alguém sentenciou que era o caso de procurar uma delegacia policial.

Nesse exato momento o mundo deu uma nova cambalhota dentro da cabeça do Seu Olívio, levando o nosso herói distraído e sem saída a duvidar, não só da própria existência, mas das coincidências fatalistas e, claro, do destino, sempre o destino a nos levar como um flume inesgotável.

Na delegacia, o escrivão pediu um minuto e foi até a sala ao lado buscar um café. Trouxe dois e deu-lhe o outro, apontando o dedo em riste como se dissesse “só mais um minutinho”, e cruzou a porta de vidro na lateral do balcão de entrada.

Desolado, o homem esperava. E quando foi jogar o copinho do café no lixo, sentiu que o seu telefone tocava ali no banco ao lado. O coração deu uma disparada e ele suspirou fundo, dizendo um alô esmorecido à própria mulher.

– Oi, Bem. Já está na estrada? Tô num intervalinho da aula aqui e liguei só pra saber de ti. Deu tudo certo na reunião? Tá chovendo aí? Encontrou o Fernandes? Que horas você prevê chegar em casa?

– Sim, tá garoando aqui.

– Que voz é essa? Eu fiz um monte de perguntas e você só falou da chuva!

– É que eu estou na delegacia. Mas quando chegar eu te conto, tá?

– Como assim? Olívio, como assim? Presta atenção. Você está numa delegacia e vai me contar quando chegar em casa? Tá maluco? O que aconteceu? Fala. Fala logo. Ai, meu Deus do céu!

– Não foi nada, Bem. Fica calma.

– Como fica calma? Olívio, me fala o que aconteceu. Me fala a-go-ra.

– Roubaram o nosso carro. Eu estacionei na rua, na esquina. Devia ter botado no estacionamento do prédio, como eu tinha pensado. Mas não, sou burro. O carro ficou lá o dia todo e, claro, como eu dei mole ele foi roubado. A única vez que a gente comprou um carro zero e deu nisso. Não sei como eu posso ser tão besta. E tão azarado.

– Bem, calma. Me fala uma coisa primeiro: de que carro nós estamos falando?

– Ô mulher, e quantos carros a gente tem? Só um, né? O único, o Uno que agora está com um ladrão qualquer.

– Olívio, esse carro, o nosso carro, está aqui comigo! Você viajou com o carro do Baiano da mecânica. Um Fusca! O nosso carro está aqui na escola, comigo.

Um silêncio incômodo foi se estendendo.

– Bem? Olívio? Bem, fala comigo. Fala.

– Acho que eu tô ficando doido. Esqueci completamente que tinha viajado com o Fusca e não com o Uno. Aí quando fui procurar por um, não achei. Claro, porque era o outro que eu estacionei lá na calçada. Puta merda, que coisa de louco!

– Então, pensa comigo. Tá tudo certo. Fica calmo e corre lá no lugar de novo e vê se o Fusca está lá. Pronto.

– Que lugar?

– O lugar que você estacionou o carro, homem... Vai, corre lá!

Quando Seu Olívio se levantou, correndo, quase esbarrou no escrivão que já vinha chamá-lo, finalmente. Foi o tempo de dizer umas palavras sem nexo, frases inacabadas, mas que nessa altura não iam fazer a menor diferença.

– O senhor me desculpe, mas eu achei o meu carro. Não vou fazer mais o boletim. Que dizer, não tinham roubado ele. Não o meu, o do meu amigo, o Baiano. Minha mulher está com ele na escola. Quer dizer, ela está com o Uno, não com o Baiano. Entendeu? Entre deixar num estacionamento ou na rua, na sombra da árvore, eu preferi a sombra. E agora eu vou lá pegar o Fusca pra voltar pra casa. Não roubaram ele. Ufa, obrigado pelo atendimento. E pelo café. Até.

A única perda concreta que o Seu Olívio teve naquele dia foi não poder ver a cara do escrivão, rindo daquela sua saída eufórica, apressada, sem dizer coisa com coisa. Sem entender patavina, o funcionário ia apontando a esmo os dedos indicadores, como que mapeando caminhos opostos, improváveis, em direções aleatórias, até que por fim se deu por vencido, aquietou e balançou a cabeça lentamente:

– Que gente doida essa que aparece por aqui!

 


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Um Dia Duro Pra Sair do Escuro

 

Eis que as primeiras notícias da manhã davam conta de que a Polícia Rodoviária Federal estava fazendo operações nas estradas de todo o país, com o objetivo de impedir que as pessoas fossem votar.

Nas cidades do Nordeste, principalmente, e nas periferias das grandes metrópoles as polícias militares faziam a mesma coisa.

No Rio de Janeiro o Exército montou verdadeiras barricadas, pelas quais só passavam eleitores que indicassem seus votos no candidato à reeleição. Na Avenida Brasil os policiais faziam blitz parando carros e ônibus e só liberavam aqueles que declaravam o voto no verde e amarelo. Para garantir que os veículos não fossem parados nas demais barreiras logo à frente, os próprios soldados adesivavam os carros com o número do candidato. Era a senha para que não fossem parados novamente.

Nas primeiras horas do dia o número desse tipo de operação chegava a 100 e, no meio da tarde, já era mais de 500 em todo o país.

Não bastassem essas violências contra o eleitor, tudo isso era apenas uma espécie de complemento aos atos terroristas de dias anteriores, quando um ex-deputado ao resistir à prisão, ou seja, a uma ordem da Suprema Corte, desferiu 50 tiros, inclusive de fuzil, e detonou algumas granadas na direção dos agentes da Polícia Federal, que cumpriam a ordem. Na mesma toada, uma deputada da base governista era filmada, de arma em punho, perseguindo um cidadão pelas ruas de São Paulo, em plena luz do dia.

Por mais que o Superior Tribunal Eleitoral tentasse conter as sabotagens ao processo eleitoral em curso, ordenando a suspensão das operações nas rodovias, tudo o que se via era um quadro flagrante de tentativa de manipulação e desrespeito às regras da votação que se estendia.

Desonesto com apoio de desonestos. Torturador com apoio de torturadores. Genocida apoiado por genocidas. Fascistas com apoio de fascistas. Exterminador de florestas apoiado por exterminadores idem. Negacionista da ciência e da vacina contando com o apoio de negacionistas da ciência e da vacina. Destruidor da Cultura e das Universidades Públicas apoiado por destruidores da Cultura e das Universidades Públicas. Determinado a extinguir a Saúde Pública – SUS, com o apoio daqueles que igualmente querem o fim da Saúde Pública no Brasil. Ditador, por diversas vezes pediu a volta do AI-5 e o fechamento de Congresso e STF, e tudo isso tendo como apoiadores outros ditadores, os ditos cidadãos e cidadãs de bem. Homofóbico e machista, completando o pacote, com apoio, óbvio, dos machistas homofóbicos e racista com apoio dos racistas. Simples assim.

Quem se dispôs a dar o seu voto a esse indivíduo, saiba que se ele sempre foi tudo isso e que, com o seu ato, cada qual firmou, assinou, aderiu totalmente, eu disse totalmente, a tudo o que ele representa, faz e diz, na sua linguagem indecente, típica do homem primitivo que sempre demonstrou ser. Não dá pra se esconder agora. Todos sabiam exatamente do que se tratava. Cada um que assuma a sua culpa, a sua imoralidade e desonestidade com a raça humana, com o país, o próximo e também com o futuro dos seus filhos e netos.

Pois voltando ainda à cronologia do 30 de outubro, no início da apuração dos votos, todo o país sabia que as tais tentativas de sabotagem só serviriam para prejudicar um dos lados da disputa. E era essa a maior das preocupações: com a justiça daquele processo que se desenrolava.

Já nos primeiros números eu senti que não ia suportar ficar na frente da tevê testemunhando cada ponto percentual. Então eu fui pro quarto e fiquei ali andando no escuro. Saía pelo corredor, passava na porta do banheiro, indo até a janela, sem rumo, ora com a cabeça entre as mãos, ora esfregando o rosto e a testa e respirando forte, descompassado.

Fiquei assim por quase duas horas. Rezava e pedia. São Benedito, o santo do meu pai, Nossa Senhora de Fátima, Cabocla Jurema da minha avó Júlia, Vovô Cipriano, Caboclo Ubirajara Peito de Aço, Seu Tranca Rua, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, São Judas Tadeu, Joanna de Ângelis, Emmanuel, Eurípedes Barsanulfo, André Luiz, Chico Xavier, Doutor Bezerra de Menezes. Por vezes as lágrimas teimavam em vir. E eu rezava ainda mais.

Imediatamente, quando me surgiu a imagem da minha mãe, eu logo pensei no que ela faria se estivesse ali comigo, se estivesse naquela situação de ansiedade e desespero, almejando um bem, em nome de tanto bem, e de tantas pessoas que também precisam desse mesmo bem.

E como sou filho da dona Jurema, optei por fazer exatamente o que ela faria: uma promessa.

Ali, no escuro do quarto, diante da janela que mostrava uma noite até então ameaçadora, eu lembrei da minha mãe e da gloriosa Santa Rita. A Santa Rita dos Impossíveis. A Santa que dá nome à igreja onde, por quase três anos, eu fui coordenador do grupo jovem e toquei nas missas dos fins de semana. E lembrei que já tinha um tempo que eu não conversava com ela, que não relembrava daquele tempo, daquelas músicas, da imagem que ladeava o altar, sempre rodeada de lindas rosas vermelhas.

O fato é que mal deu tempo de verbalizar minha promessa e entra a Rê pelo quarto repetindo “Deu. Deu. Viramos. Ganhamos.”

Hoje, dia 31, eu saí no meio da manhã para ir até a Igreja de Santa Rita. Entrei, sentei em um dos bancos e fiquei ali sozinho, rindo, chorando, agradecendo, rezando, passando as mãos pela cabeça, aliviado pela imensa felicidade e alegre pelo reencontro com aquela imagem tão querida.

Pela inspiração que mais uma vez veio da minha mãe, só posso dizer que Deus é quem sabe tudo sobre o meu frágil coração.

Sempre.

Amém.

 

 

 

PS - O título dessa crônica faz referência à música “16 de Novembro”, de Ivan Lins e Vitor Martins, lançada em 1988.

https://www.youtube.com/watch?v=7k5qgGugZLU


sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Judith


Minha mãe tinha bronquite. Desde pequena vivia às voltas com sua respiração descompassada e na fase adulta, por recomendação médica, passou a usar periodicamente uma bombinha – como ela chamava –, que não era nada mais que um inalador, via oral, um santo remédio para aliviar nos surtos de falta de ar.

A bronquite é um mal que, embora não seja tão grave, tem uma peculiaridade que faz com que todo mundo tenha uma sugestão na manga, sempre que está diante deste diagnóstico. Assim era também com a dona Jurema. Em todo lado que ia alguém sugeria uma fórmula milagrosa, seja chá, água, planta, raspa disso e daquilo, simpatias mil, exercícios diversos, maneiras estranhas com posições idem para se deitar e até objetos variados a serem aplicados na boca, durante a noite, e que controlariam a respiração durante o sono.

Tinha vezes que a crise só regredia se ela fosse socorrida no hospital, às pressas, pra ficar no balão, que era como a gente chamava o bronco dilatador enorme, quase uma cápsula espacial, que só tinha lá. A gente ficava horas e horas ali na recepção esperando, até que enfim ela surgia numa cadeira de rodas trazida pela enfermagem, renovada, porém abatida.

Foi durante uma festa de santo, no centro espírita que ela frequentava, que um orixá a chamou pra perto e entre uma dança e outra sussurrou que, como solução para a cura da sua bronquite, ela deveria criar uma tartaruga. Sem entender a frase súbita, ela esperou o término daquela gira e foi até a entidade para obter mais detalhes. A recomendação, pois, era de criar uma tartaruga, mas uma que tivesse treze pintas no casco. E era isso, apenas criar essa tartaruga e ela ia se curar da bronquite.

Dentre todas as indicações que surgiram ao longo dos anos, sejam as médicas e as não-médicas, aquela jamais seria apenas mais uma, até porque havia de ser considerada de onde vinha e de quem vinha. Então minha mãe, primeiro, disse que o problema era onde iria achar uma tartaruga de treze pintas. Depois, analisando melhor, cuidar de uma tartaruga não seria algo assim tão difícil, a ponto de inviabilizar a tentativa. Assim, a família toda, e os amigos também, passaram a ter como missão conseguir aquele animal raro que, no orbe das divindades africanas, curava bronquite.

Não lembro quanto tempo se passou mas, um dia, uma amiga da família chegou lá em casa com uma caixa de papelão e deu pra minha mãe. A gente já tinha quase esquecido do caso mas, assim que ela abriu a caixa e disse um “minha nossa, você conseguiu achar”, todos em volta já sabíamos que se tratava do famigerado réptil. Interessante foi notar as pessoas chegando perto do animal e apontando o dedo para contar as suas pintas, como que pra se certificar de que tinha realmente as treze que o orixá prescreveu.

Daquele dia em diante minha mãe nunca mais usou a sua bombinha. Não sei quantas vezes a vi contando esse caso e mostrando a sua melhora na respiração desde então. Uma vez ela foi buscar a dita cuja na gaveta pra mostrar pra alguém e quando a acionou descobriu que, de tanto tempo sem uso, já nem funcionava mais e a ponta de onde antes saía o spray do remédio estava até travada. Estava tudo colado já e, vai ver, nem tinha mais líquido algum lá dentro, o que provava o tanto de tempo que o aparelho não era usado.

 Muitos anos depois a tartaruga das treze pintas foi doada pra um casal, amigo da família, que vivia num sítio fora da cidade, justamente numa época em que a gente passou a morar em apartamento. Foram poucos esses anos e, logo que voltamos a residir em casa térrea novamente, minha mãe ficou com pena de pegar de volta o bicho.

Outro lapso de tempo considerável e minha irmã Alyne ganha de presente de uma amiga, também numa caixa de papelão, uma pequeníssima tartaruga. Logo que vimos a pequena, nascida em Pindamonhangaba, e que cabia na palma da nossa mão, nos demos conta de que estávamos todos nos remetendo àquela antiga tartaruga das treze pintas. Minha mãe mais ainda. O sentimento era um misto de saudade e alegria pela nova companhia que chegava.

Foi assim que surgiu na família a Judith, a segunda geração de tartarugas. Sem as treze pintas, sem obrigação de cura e dessa vez, não através da mãe, mas pelas mãos da filha, Alyne. Como de costume, a gente foi, aos poucos, descobrindo o que ela comia, como dormia, o que gostava, se podia dar banho, se ficava na sombra ou no sol, qual a melhor casinha etc. A princípio a gente só percebeu que ela era muito mais serelepe que a antecessora, mais astuta, sei lá. E essa sempre foi a maior característica dela.

Depois de um tempo a gente passou a dizer, em tom de troça, que a Judith era um bicho arisco, o que contrariava a lógica de toda e qualquer tartaruga. Mas isso se dava pela facilidade com que ela se escondia de todo mundo, de um minuto pro outro. Muitas vezes a gente até achava que ela tinha fugido de casa, sei lá ganhado a rua e saído desembestada – desembestada já é demais – mas, enfim, que ao sair portão afora alguém a tinha visto e sequestrado pra todo o sempre. Só que dali a umas poucas horas, a gente bem distraído e, pronto, passava a Judith no meio do quintal, desfilando com sua vagarosa intrepidez, como se dissesse “olá, tô aqui, ninguém me pega, hahaha”.

Assim, o primeiro que a via, logo chamava a todos e nós ficávamos ali, como plateia, apreciando o desfile, tentando adivinhar onde raios ela tinha estado e, ao sair do seu esconderijo, se era por razão de fome, sede, calor ou lá o que fosse. Nessa hora, quase sempre um de nós saía pro quintal com uma banana, um tomate ou uma folha de alface nas mãos, pra tentar saber dela o seu real paradeiro de há pouco. Mas, pra nossa surpresa, Judith nada dizia!

Recentemente, há cerca de cinco ou seis anos, e isso é recente ao menos para uma tartaruga, a Judith foi morar em Saquarema, com uma prima nossa. E, por vários motivos, essa acabou sendo uma mudança colossal na vida dela, não só pela nova cidade em si, na belíssima Região dos Lagos.

É que, pela primeira vez, a Judith foi levada à presença de um veterinário. Não havia nenhum motivo sério, mas apenas uma visita. E logo que o médico examinou, perguntou:

– Como é mesmo o nome dela?

– Judith – respondeu a prima, acrescentando que foi a dona que batizou.

– Mas tem um problema.

– Ai meu Deus, qual o problema doutor?

– É que a Judith é um macho e não fêmea.

Pronto, estava criada a mais nova sequência de piadas na família. Tantos anos que chamamos a Judith por um nome feminino e ela agora devia querer se vingar de nós. Quanta maldade com ela, quer dizer, ele. Agora seria O Judith? Tadinho. Será que ele tentou avisar isso pra gente alguma vez? Deve ter chamado a gente de burro toda vez que pronunciávamos o seu nome. Quem sabe até cuspia pro lado, de nojo, de raiva. Por isso que sempre desaparecia das nossas vistas o coitado. Vai ver que agora, só pra provocar, ele passa no quintal desfilando vagarosamente, como modelo, galã de novela, desafiando a todos com o seu olhar de John Wayne? Inclusive, nos dias em que está de ovo virado deve chamar todo mundo pra briga.

Eu, pessoalmente, prefiro a versão da minha irmã. A partir de quando soube da notícia, a Alyne conta que, nos seus sonhos, o encontro da Judith com os outros animais lá em Saquarema se dá assim:

– Oi Judith. Soube que você agora é macho! É verdade mesmo?

– Judith é o cara...ho, meu nome agora é Zé Pequeno, porra!

E sai rindo, cinematograficamente...

 

 


quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O Mestre José Louzeiro


Um dos meus primeiros trabalhos na faculdade de jornalismo foi entrevistar uma pessoa famosa. Se não me engano foi logo no segundo semestre do curso e, bem, morando no Rio de Janeiro, os alunos puderam escolher todo tipo de pessoa, dentre os mais variados matizes daquilo que se pode vir a entender como famosos, ao gosto do freguês.

A gente tinha liberdade pra escolher o entrevistado e, em vista de metade dos colegas estarem rumando para o lado dos cantores, atores e jogadores de futebol, eu decidi que ia fazer tudo pra não escolher nada daquilo.

Conforme o aluno ia definindo o nome do personagem o professor ajudava, orientava e ia organizando a pauta junto com cada um, alertando para os detalhes que ele iria cobrar quando fosse avaliar o trabalho. Nesse sentido, contava muito a posição do entrevistado e eu já estava um tanto aflito, pois tinha falado com todo mundo sobre quem poderia ser o meu alvo e ninguém tinha me dado uma pista, um norte.

Foi então que meu amigo Renê me fez uma proposta. Primeiro, disse que o seu indicado não era assim, tão famoso, o tipo de pessoa que é reconhecida na rua. Mas depois assegurou que era um sujeito muito singular e que ia ter o maior prazer em colaborar com um futuro jornalista, no caso eu.

Assim que ele falou o nome – José Louzeiro – eu devo ter feito uma cara de nada. Mas logo a seguir, ele disse que se tratava do autor do livro Lúcio Flávio, que tinha virado filme, e eu então aderi logo de pronto à sua indicação, agradecendo e pedindo mais detalhes sobre o escritor e também jornalista.

Não havia internet na época e, portanto, foi lendo algumas orelhas dos seus livros e algumas reportagens sobre o filme famoso, que mencionavam outras obras suas, que eu fui esboçando o perfil do meu escolhido.

Marcamos dali a alguns dias a entrevista. Ele morava no bairro das Laranjeiras, perto do Estádio do Fluminense, numa ruazinha tranquila, e o seu apartamento possuía o maior número de livros que eu já tinha visto em um lugar que não fosse nem biblioteca nem livraria.

Eu mandei os abraços que o Renê tinha pedido e aproveitei para agradecer pelo assentimento do mestre em me receber. Ele maneou a cabeça e disse que o Renê era seu chapa. Chapa e querido amigo.

Eu tinha levado uma boa quantidade de perguntas, todas escritas e numeradas, no meu bloco de apuração, ferramenta indispensável a qualquer jornalista que se preze. Acontece que o papo corria tão agradável, fluido e cheio de detalhes que eu nem me preocupei com o roteiro prévio que, por fim, estava ali apenas pra me dar uma certa segurança.

Além do bloco, outra ferramenta essencial era o gravador e, por via das dúvidas, eu também estava gravando a conversa. Então, a minha tranquilidade era tal que o mestre ia se enveredando pelos causos da sua vida de jornalista policial, escritor e roteirista, e não tinha o menor cabimento eu interromper. Ademais, aquela narrativa era uma verdadeira crônica da cidade maravilhosa, rica e repleta de personagens pitorescos, todos eles frequentadores assíduos das mais simplórias, brejeiras e cariocas páginas policiais.

A noção do tempo decorrido naquela tarde só me veio quando eu cheguei no ponto de ônibus, voltando pra casa. Já era quase noite e, enquanto eu esperava a condução, rememorava os bons momentos de há pouco. Bebemos juntos, eu, o mestre José Louzeiro e sua esposa, uma jarra inteira de suco de caju, acompanhada de salgadinhos de queijo, bolo de laranja e uns canapés deliciosos que eu nem sei do que eram. O casal, daqueles que completam um pro outro as datas e os nomes momentaneamente esquecidos, foi uma nota a parte. Ela não ficava a um milímetro sequer da sua inteligência, talento e generosidade. Uma mulher de uma cultura e educação tal que não havia assunto na nossa conversa que ela não dominasse à altura ou mesmo mais do que o mestre.

Trabalhando de dia e estudando de noite o aluno tem de administrar bem o seu tempo. Eu não era muito bom nisso, mas excepcionalmente ainda havia alguns dias pra escrever aquela entrevista. Foi então que a minha sorte sussurrou para mim e, logo que surgiu um tempinho livre, eu tratei de ir ouvir a fita cassete pra começar a mapear o roteiro e os tópicos principais. Digo sorte porque nesse exato momento eu me dei conta de que o gravador não tinha registrado nada da nossa conversa. Algum problema deve ter dado na fita, pois que ela estava intacta, no início do carretel, como se não tivesse sido usada. Pra dizer que não tinha nada gravado, havia uma frase com a minha voz que dizia “teste, 123, teste...” E nada mais.

Um desespero considerável estremeceu em mim e, depois de tentar sem êxito recuperar alguma gravação, eu decidi começar a escrever com o que eu tinha de memória mesmo. Era o único jeito.

Algumas datas e títulos que eu tinha anotado, tratei de conferir tudo com o Renê. Ele riu quando eu contei da pane do gravador e disse, claro, que ia me ajudar no que fosse possível. Depois jurou que não ia contar nada pro Louzeiro, mesmo apostando que ele ia dar boas risadas com o fato.

O trabalho, por fim, até que ficou bom. Tirei uma nota alta com ele e a turma gostou da exposição eu fiz. O professor elogiou demais a pessoa que eu escolhi e durante a aula disse que, na nossa vida profissional, ainda teríamos a sorte de presenciar muitas outras entrevistas que iriam enriquecer a nossa cultura e o nosso aprendizado. Que era pra gente aproveitar bem essas ocasiões.

 

Essa tarde que passei com o mestre José Louzeiro jamais deixou de estar presente na minha vida. Foi a primeira vez que eu me senti um jornalista de verdade. Talvez pela amistosa e respeitosa acolhida que tive; talvez pela aula de conhecimento e simplicidade que me deu aquele casal, o fato é que, na minha memória, eu volto àquela sala várias vezes, para desfrutar renovadamente tudo que vivi.

Finalmente, quero dedicar essa crônica a um jovem amigo, futuro jornalista, que publicou nesta semana a sua primeira matéria, ainda como estagiário – um foca –, em um grande jornal do Rio de Janeiro.

Ao Danilo o meu abraço e minha torcida.

 


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Tia Bebel

 

Eu já cortava o cabelo no salão da Dona Rita há um bom tempo. Era perto de onde eu pegava o ônibus para ir pro trabalho e minha mãe gostava muito da proprietária, amiga dela de longa data.

Uma certa ocasião eu resolvi que, além de cortar o cabelo, iria pedir pra aparar a barba. Normalmente eu fazia isso em casa mesmo, mas dava um certo trabalho manter os fios sempre do mesmo comprimento, ficar mirando a altura no espelho, equilibrando os lados do rosto, a altura, a simetria. Era um trabalhão.

Então, naquele dia, depois de cortar o cabelo a moça passou a cuidar da barba, a meu pedido. Me perguntou como eu queria e eu disse que era só aparar, alertando para que os dois lados ficassem minimamente iguais. Para que ela ficasse calma, pois que nunca tinha trabalhado com barba, eu disse no final das recomendações que não era nada muito complicado, que era só ir aparando.

Mas a minha surpresa foi grande naquela tarde. No momento em que ela me perguntou se estava tudo ok, dando por terminado o trabalho, eu levantei os olhos e vi um rosto muito estranho no espelho. Só depois de algum tempo fui descobrir que a tal estranheza era que ela tinha feito uma divisão entre a barba e o cabelo, deixando um espaço de uns dois centímetros entre um e outro. Nem sei como eu não percebi aquilo a tempo, mas o fato é que ela raspou com uma lâmina aquela região e a barba acabava num lugar, aí vinha um pedaço liso de rosto e depois começava o cabelo. Se não fosse em mim eu juro que era até o caso de dar umas boas risadas diante daquela cara alongada que até parecia um personagem de gibi.

Assim que se chegou pra perto da minha cadeira a Dona Rita já veio dizendo impropérios pra coitada da cabeleireira.

– Menina, o que você fez? Olha essa barba longe do cabelo. Você nunca viu que eles se juntam? Porque raios você foi raspar aqui dos lados? Minha nossa. O que eu vou fazer agora? Olha o moço como ficou! Parece que o rosto dele caiu do resto da cabeça e se deslocou pra baixo. Tá horrível isso!

A moça saiu chorando pro fundo do salão e todas as outras colegas se aproximaram pra ver o resultado daquele rosto estranho que ela tinha acabado de esculpir. Eu sorria meio sem jeito, dizia que não tinha problema, que tinha sido um erro normal, que acontecia às vezes, mas na minha cabeça eu já tinha como certo que, ao chegar em casa, a primeira coisa que eu ia fazer era raspar toda a barba.

Eu acho que por vergonha de voltar na Dona Rita, prevendo que toda a história pudesse vir à tona de novo, o que seria ruim pra mim e também pra moça que era a protagonista do pitoresco desastre, eu decidi que iria evitar o salão da amiga da minha mãe. E foi por esta razão que, desse dia em diante, quem passou a cortar o meu cabelo foi a Tia Bebel.

A Tia Bebel era tia dos meus filhos. Na verdade era tia-avó deles. Mas todos na família a chamavam de tia, inclusive eu. Ela cortava o cabelo de quem a pedisse e gostava de cultivar aquilo como uma genuína habilidade sua, já que é praticamente unanimidade pra todo mundo que cortar cabelo é sempre algo muito complicado.

Na primeira vez que a gente marcou, enquanto ela botava o avental em mim, perguntou como eu queria o corte. Como eu não sabia muito bem como eu poderia orientá-la, comecei dizendo que, no geral, era só aparar mesmo e deixar tudo um pouco mais baixo.

A um certo momento ela perguntou se cortava acima da orelha e eu senti um arrepio por ter esquecido a parte mais importante, que não era pra deixar a orelha de fora e sim, manter o cabelo cobrindo as orelhas quase completamente. Eu devo ter dito aquilo com alguma insistência – talvez porque tenha sido a primeira vez – pois, dali em diante, sempre que a gente ia cortar a primeira coisa que ela repetia era:

– Ok, então é pra baixar um pouco todo o cabelo mas deixar as orelhas cobertas, né? É isso?

– Isso mesmo.

– Pode deixar que eu não vou cortar ali não. Fique tranquilo.

Sempre quando chegava perto daquela região eu sentia que ela tinha o maior cuidado. Cortava as pontas no entorno e nunca esquecia de me avisar que estava deixando quase todo o cabelo por cima das orelhas, conforme eu queria.

Esses avisos que menciono aqui ocorriam porque o lugar em que a gente adaptava como salão era uma varanda que ficava nos fundos da casa, dando para o quintal e, por isso, não tínhamos um espelho grande daqueles que vemos nas barbearias. Por esta razão a Tia Bebel sempre ia falando e atualizando o andamento do corte.

Por vezes eu até desconfiava se tinha exagerado naquela específica recomendação, mas ela mesma tinha aquilo como parâmetro, ou seja, que o tempo certo que o cabelo precisava de novo corte era justamente quando já estava demasiado embolado acima das orelhas. Aí ela dava uma boa olhada, dizia que estava grande, aí marcávamos o dia, quase sempre num final de semana, e eu concordava, agradecido.

Muitas vezes na vida lembrei da Tia Bebel. Principalmente quando não gostava dos cortes de cabelo que me faziam, salões afora. Nessas ocasiões eu sempre lembrava que ela caprichava como ninguém e que tínhamos todo o tempo do mundo pra aparar as pontas, corrigir os comprimentos dos fios e tudo o mais que precisasse. Era por isso que o meu cabelo sempre ficava impecável.

Um adendo pitoresco foi que, depois de alguns anos, quando a reencontrei, a Tia Bebel pôde finalmente me falar sobre o que na verdade a afligia naquelas nossas sessões capilares. Nessa ocasião, eu já não trazia o cabelo cobrindo as orelhas e o corte atual era bem diferente do daquela época, como tudo na moda. Ela então reparou o comprimento novo, olhou com atenção os dois lados da cabeça e suspirou:

– Eu achava que você tinha algum defeito na orelha. Por isso que insistia tanto pra que eu não cortasse o cabelo curto ali, acima – e fez um gesto com os dedos imitando o abrir e fechar da tesoura.

– Sério? Eu insistia tanto assim?

– Sim. Eu ficava em pânico com aquilo. Achava que tinha alguma coisa errada com as suas orelhas, ou com uma delas. Agora, olhando assim de perto, as duas, vejo que não têm nada de anormal nelas. Que bom. Fico aliviada. De verdade.

E assim ficamos ali um tempo, rindo e falando de cabelos, de cortes e orelhas defeituosas nesse mundo de meu Deus.

 

 


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A Médica


Dois mil e vinte foi um ano difícil de atravessar. Principalmente para quem pegou Covid, como eu. O mundo vivia um sobressalto coletivo e a Ciência foi, para a maioria, o divisor de águas que fez toda a diferença entre viver e fenecer, expondo ao planeta o nosso abismo particular, que opunha civilização e ignorância.

No Brasil o circo dos horrores foi pesado e mórbido, com os desvarios fascistas de praxe que negavam a cura pela vacina e juravam ter visto caixões vazios dentro das sepulturas.

Enquanto isso algumas igrejas evangélicas político partidárias davam bençãos a remédios para vermes, profetas indicavam unções com ozônio e videntes imundos bradavam que jamais chegaríamos a mil mortes no país, nesta que era uma pandemia que duraria, no máximo, três meses.

Então, naquele fatídico ano, no final do mês de setembro, eu comecei a sentir alguns poucos sintomas. No início não era nada muito incômodo, mas, depois de o teste dar positivo, tudo se intensificou. Um enorme enjoo me impedia até mesmo de comer, enquanto uma dor forte, que se estendia por todo o corpo, não me deixava fazer nada, sequer dormir.

Eu já estava me acostumando com as longas noites vagando pela sala de casa, no escuro, vendo o relógio digital trocar os seus números a cada minuto, quando surgiu o contato de uma médica, clínica geral, que estava seguindo uma tendência, uma bem-vinda tendência, de atender aos pacientes por via remota, através de chamadas com câmera por aplicativos digitais.

No dia e hora marcados, eu e Rê estávamos na frente da telinha conversando com a médica. Um alívio. Um alento que só depois de algum tempo eu pude entender, já que naqueles dias eu mal conseguiria sair de casa, caminhar ou ir a uma consulta fora. E também havia o receio de contaminar as outras pessoas, de seguir os protocolos de distanciamento e ao mesmo tempo estar necessitando de cuidados médicos.

Aquela primeira consulta durou muito tempo, nem sei ao certo quanto, e terminou com ela nos pedindo vários exames e passando alguns remédios iniciais para o enjoo e a dor no corpo. Também receitou um calmante, coisa que eu jamais tinha tomado na vida, mas que se revelou de grande ajuda para as próximas noites de insônia.

O fato intrigante foi que depois da segunda e da terceira conversa, igualmente por câmera, quando a gente indicou que faríamos um novo depósito com o mesmo valor da primeira consulta, ela respondeu que não, não era necessário, pois aquelas seriam consultas de retorno, nas quais ela estava apenas avaliando a evolução do quadro clínico e analisando os resultados dos exames.

Durante a semana, quando ela mandava mensagens perguntando como eu estava me sentindo, eu dizia pra Rê, que era quem respondia, que não achava certo todas aquelas consultas e a gente só pagar uma única vez. Mas aí, chegava na hora ela desconversava, dizia que não iria cobrar da gente e ficava de aceitar o pagamento na próxima vez, o que por fim, jamais aconteceu. Por resistência dela, pois, o que a gente só compreendeu bem depois.

Eu fui melhorando bem rápido com os remédios. Mas com toda a certeza a minha melhora foi totalmente resultado da atenção daquela doutora, do cuidado que ela tinha em me proporcionar calma e tranquilidade através das suas prescrições e prognósticos médicos. Eu tinha a nítida sensação de que estava me recuperando e, mais do que isso, sentia que se algo piorasse, ela ia resolver e de algum modo me salvar. Diante de todo o quadro mundial e da situação das mortes que a gente via todos os dias nos telejornais, a sua imagem calma e serena durante as consultas virtuais, me dando esperança e cura, fez toda a diferença.

Por conta desse país desigual e injusto, onde muitos não tiveram e provavelmente não terão a mesma oportunidade, deixo aqui o meu lamento e a minha indignação.

Durante esses quase dois anos, quando eu penso nesse período em que eu tive a Covid, por algumas vezes me vem uma certa incredulidade e eu ponho em suspeição se tudo aquilo realmente aconteceu. As poucas alucinações que eu tive naquelas três semanas da doença só davam conta de me aterrorizar e me espantar o sono, já bem difícil de se aproximar. E até nessas horas a imagem da médica, da minha médica, acalmando tudo, apascentando o meu espírito dolorido, era algo que vinha me resgatar de onde eu estivesse.

E é no intuito de resgatar esse sentimento, que une enorme gratidão e reconhecimento, que agora torno pública essa história pessoal.

Doutora, que a Paz que a senhora me proporcionou retorne em dobro, o quanto couber, para a sua existência. Esta e as próximas.

Obrigado por me curar.

 


terça-feira, 9 de agosto de 2022

Coincidências

 

Quando eu fiz nove anos meu pai me deu uma vitrola de presente. Era uma Philips, portátil, cuja tampa era também a caixa de som, só precisando ligá-la à saída de áudio. Tinha um som bom aquela caixa, mas o curioso é que, junto com a vitrola, eu ganhei também um disco do Johnny Mathis que completava o presente.

Johnny Mathis foi o cantor preferido do meu pai a vida toda. Portanto, na família, quem tinha essa informação deu uma sonora risada quando eu abri o embrulho do disco, depois de montar toda a vitrola nova. Era um presente pro filho, ok, mas o pai é quem ia se regozijar muito mais ao ouvir o seu artista preferido. Muita coincidência, teriam dito alguns.

Claro, depois eu ganhei outros discos, Carpenters, James Taylor, Bread e também Tim Maia e Elis Regina, ela que era a paixão notória da minha mãe. Mas enquanto eu tinha só aquele disco, o único disco, era o Johnny Mathis que tocava mesmo o tempo todo.

Muitos anos depois eu dei de presente ao meu pai um tocador de Mp3. Eu já morava em Florianópolis e em um dos Natais levei o tal aparelho, minúsculo na opinião dele, e que foi festejado não só por ser novidade, mas por estar recheado de músicas do Johnny Mathis. Ele passava o dia ouvindo o player. E cantava junto, sem perceber que a gente só ouvia a voz dele e ainda dava risada da sua fisionomia, enquanto ele se divertia com o fone, apertando nas laterais pra ouvir melhor.

Foi então que nessas trocas de músicas, nessa mania que a gente tinha de se encantar e recomendar os novos cantores que surgiam e suas novas canções, meu filho Deco, um certo dia, me mandou uma matéria da Mallu Magalhães. Cantora nova, recém surgida, com uma voz ímpar, de menina. Foi um sucesso de imediato. Eu gostei da sua voz mas apreciei o fato de ela ser compositora também, e ouvia tudo que ele me mandava da Mallu.

Algum tempo se passou e o Deco veio a Floripa passar uns dias. Fui buscá-lo no aeroporto e assim que entramos no carro eu disse:

– Puxa, esqueci uma coisa ali. Vou buscar lá dentro. É só um instante. Eu já volto.

Antes de sair, porém, eu liguei o rádio do carro, deixando tocar a Malu Magalhães que eu já havia preparado antes, especialmente pra ele. Foi só ligar o som e dar play.

Quando eu cheguei de volta ele estava rindo, dizendo que o rádio tocou Malu Magalhães no mesmo instante em que eu o liguei e que aquilo tinha sido a maior coincidência. Eu, então, só repeti que sim, confirmando que foi coincidência, mas rindo de volta e denunciando a armação que ele já percebera de pronto.

O tempo, bem o tempo é um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho. E se Caetano ainda canta isso, no auge dos seus 80 anos, ele deve saber de muito mais ao perceber que o tempo, por ser tão inventivo e parecer contínuo, é um dos deuses mais lindos.

Pois o fato é que, passado mais algum tempo, eu é que fui ao Rio, de novo para um período de festas. Sabia que o Deco iria me trazer do aeroporto e sabia também que tinha rolado um carro novo por aqueles dias.

Assim que entramos ele me mostrou o painel, todo azul, que mais parecia uma cabine de avião, com tantos botões iluminados e teclas aqui e ali. Enquanto cruzávamos a cidade ele ia me contando as suas novidades e eu as minhas, até que ele lembrou que tinha de falar com alguém pelo caminho e demos uma parada perto da Lagoa.

Ele estacionou, disse que voltaria logo e ligou o rádio pra que eu aguardasse ouvindo uma musiquinha. Me mostrou o botão do volume e apertou uma tecla qualquer pra acionar o som. No mesmo instante em que ele fechava a porta e ficava só o silêncio, James Taylor, bem baixinho, começava a cantar. Assim que eu ouvi os primeiros acordes da introdução já fui logo apurando o ouvido pra não perder nada daquilo.

Não sei quanto tempo eu fiquei ali, eu e o James Taylor trocando músicas, lembranças e confidências. Me lembrei do meu pai e seu Johnny Mathis e da Elis da minha mãe encantada.

Ali, sentado no carro, no meu arrebatamento eu dizia ao tempo: ouve bem o que eu te digo, pois quando eu tiver saído para fora do teu círculo, não serei nem terás sido. Tempo, tempo, tempo, tempo.

Quando meu filho retornou ao carro, com um sorriso de filho, eu falei da coincidência de ter tocado James Taylor no rádio exatamente na hora em que ele o ligou. Ele apenas concordou e reforçou que, sim, aquilo teria sido uma pura coincidência. Nada mais. Pois que elas acontecem de tempos em tempos.

Eu novamente sorri. E intui que juntos riam meu pai e minha mãe.

E também o tempo.